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quarta-feira, 4 de maio de 2011

Passional

     Encaro esses olhos que transbordam ódio. A mão trêmula aponta a arma cujo cano gélido pressiona violentamente minha testa. Aquele dedo acaricia o gatilho indecisamente, basta um leve movimento e meu destino estará selado. A expressão no rosto de meu algoz me assusta, mas ainda assim sinto pena dele. Pobre homem traído. Vítima das circunstâncias, de uma mulher promíscua, da vida atroz.
    Cada respiração, agora, é como um troféu. Não sei quanto tempo me resta, mas sei que o julgamento daquele homem é o que vai determinar tudo. Somente a absolvição interessa. Mas como esperar isso se sou culpado? Réu confesso pelo ato infame que estava a praticar quando, inesperadamente, aquele homem arrebentou a porta com um tiro e adentrou apontando-me a arma ainda fumegante.
     Não há como me eximir da culpa, pelo menos ele já me vê como condenado. Sabe Deus porque ainda pondera sobre apertar ou não o gatilho. No canto do quarto a responsável por toda a cena que se desenrola chora envolta em um lençol encardido. Chora, mas não ousa manifestar-se. Pelo contrário, observa-nos discretamente, como se estivesse apenas esperando o desfecho disso tudo.
     Eu gostaria de lançar-lhe um olhar indagador, mas sei que se desviar o olhar um pouco que seja, ele pode puxar o gatilho e por fim a isso tudo. Ah, se ele soubesse que sou tão vítima quanto ele. Se ele soubesse que também fui enganado por ela. Como eu ia adivinhar que aquela moça distinta que sempre me atiçava durante as aulas monótonas de filosofia era casada? Ela é tão jovem. Ele é tão velho. Por isso foi tão fácil acreditar que era pai dela.
     Ele está chorando agora. Deve estar lamentando ter sido tolamente enganado. Sua respiração está mais ofegante. A mão treme ainda mais. Ele olha na direção dela e uma expressão de surpresa se desenha em sua face. Volto meu olhar na mesma direção, mas antes que possa vê-la ouço o barulho de um tiro. Imagino que ele puxou o gatilho, mas ele é quem cai diante de mim com o sangue a escorrer-lhe pela testa.
     “Estou salvo!”, pensei. Mas assim que ela surge em meu campo visual, a vejo com uma arma em mãos. Ela levanta e, sem lágrima alguma, caminha até mim. Imagino que ela vai me abraçar. Entretanto sou surpreendido novamente: ela pára diante de mim, apanha a arma que estava caída ao chão e assume a posição que seu marido ocupara há segundos atrás. Olho em seus olhos e não consigo ver qualquer sentimento. Suas mãos não tremem. Novamente tenho o cano daquela arma pressionando minha testa, porém, com mais firmeza dessa vez.
     Perguntaria a ela a razão daquilo tudo, mas antes que eu possa abrir a boca ela puxa o gatilho. Caio ao chão, mas ainda consigo sentir quando ela, após limpar a arma com a qual havia tirado a vida do próprio marido, põe a mesma em minhas mãos. Estou desfalecendo, mas consigo entender o que acontece: fui uma mera peça em um jogo de interesses, uma peça de sacrifício.
     O cenário justificaria tudo: um quarto de motel, um marido traído tomado pela fúria e um amante jovem, ambos armados. Esses elementos combinados eram o que ela precisava. Agora só resta esperar a polícia chegar, alegar que, em meio à fúria, um tirou a vida do outro, e ficar com a herança do marido, principal objetivo de um casamento interesseiro. Era um crime passional, arquitetado por uma mente extremamente racional.

Um comentário:

  1. Ah, agora sim o bom e velho Robson Heleno está de volta!!! hehehee

    Muito bom, só pra variar, Seu! (Y)

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