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quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Futebol para índios

     Às vésperas de um plebiscito sobre possível divisão do estado, obras de Belo Monte sendo interrompidas e reiniciadas a todo o momento, era preciso criar uma distração para os paraenses. A massa não poderia se envolver nesses assuntos, não poderia tomar consciência dos problemas que afetam o estado. Então, para resguardar os interesses dos governantes, eis que surge o pão e circo costumeiro para salvar o dia. Sim, quer melhor distração que um jogo da seleção brasileira em Belém? Além do que, contra a Argentina?
     Pois é, esse jogo veio em um momento bastante oportuno. Era preciso desviar a atenção da população. Sem falar que o novo governo queria mostrar sua superioridade frente ao governo passado. Afinal, o grande argumento durante as eleições foi a Copa perdida. Pois bem, perdemos a Copa, mas o NOSSO governo trouxe para Belém um jogo importante. Os paraenses merecem ver de perto a seleção brasileira.
      E não é que esse papo furado colou? Tanto que os ingressos para o jogo esgotaram. A população se vestiu de euforia e fez aquela festa. A Avenida Nazaré engarrafou – mais que de costume- com a multidão que se aglomerou em frente ao hotel na esperança de ver de perto seus ídolos e, quem sabe, receber um olhar furtivo de algum deles. O treino da seleção lotou, por milhares de garotas que gritaram loucamente pelo garoto da mídia do momento: Neymar. E não é que esse menino vende? Milhares de pessoas se juntaram em frente à TV para ver a matéria com ele passeando no ver-o-peso. As crianças adotaram a moda do moicano da noite para o dia.
     Isso por si só já seria suficiente para denotar o poder de alienação que esse jogo exerceu nos paraenses. Mas, acreditem, tem mais. No dia do jogo ligar a TV era algo simplesmente insuportável. A cada cinco minutos se falava do jogo. Chamadas ao vivo mostravam pessoas que aguardavam em frente ao Mangueirão desde o meio dia para ver um jogo que só começaria às 22:00 horas da noite. As pessoas falavam do jogo nas ruas como se fosse final de copa do mundo. Tive certeza disso quando vi bandeiras em frente às casas e pessoas com o rosto pintado gritando: Brasiiiiiiilll!
     Quando o jogo teve início , devo reconhecer, os paraenses mostraram sua paixão pelo futebol. Estádio lotado, apesar dos ingressos caros. Execução do hino nacional com direito a coro e tudo. De fato foi uma grande festa. Até a seleção, que andava ruim das penas, literalmente, resolveu colaborar. Não mostraram o futebol arte que todos esperavam, mas, pelo menos, venceram. Ao término do jogo, o clássico aperto de mão dos jogadores com as autoridades e close no governador. Sim, Ele precisa aparecer, foi Ele quem nos presenteou com esse jogo maravilhoso.
     Comemorem paraenses, soltem fogos. Embriaguem-se nessa alegria efêmera. Quem se importa se esse jogo não teve valor algum, foi apenas um show para enriquecer os organizadores? Quem se importa se a Copa vai acontecer aqui ao lado e teremos que assistir aos jogos, uma vez mais, pela televisão? Vendo isso, tenho a impressão de que pensam que nós, paraenses, somos como aquelas crianças que querem um brinquedo mais caro, mas que devem sempre se contentar com aqueles que nos dão.
     Lá fora somos chamados de índios, e isso nos enfurece. Mas, é só parar para pensar que veremos que, infelizmente, eles têm razão. Nosso comportamento não permite que se diga o contrário. Nossa atitude é a mesma, o que mudaram foram as circunstâncias. Antes vieram aqui e nos distraíram com espelhos enquanto extraiam nossas riquezas. Agora eles nos presenteiam com jogos da seleção enquanto dividem nosso estado e destroem nossa natureza.

Fonte imagem: http://2.bp.blogspot.com/-6wG-TaLawuA/Ta4tfaDHKoI/AAAAAAAADAY/obNtNSz-Vbs/s1600/indio-.jpg

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Realista

     Teus olhos brilharam e isso me enfraqueceu. Era algo novo, desconhecido para mim. Havia emoção em ti, diria que talvez paixão. Minhas palavras fugiram de mim neste instante. Então me abraçastes e teu corpo quente se encaixou tão bem ao meu. Isto contrariou o que para mim era costumeiro. Queria sair dali, mas meu corpo não me obedecia. Então ele deu o último imperativo: meus olhos se fecharam e em teus braços adormeci.
     Foi a melhor noite de sono que tive em muito tempo. Acordei sem saber ao certo onde estava, nem porque aquele sorriso estava em meu rosto. Onde estava o meu mau humor matinal? Que lençóis macios eram aqueles? De quem seria aquele quarto aconchegante? Onde quer que eu esteja uma coisa me veio à mente: quebrei as regras. Na verdade, seria “a regra”. Uma norma pessoal que me mantivera solteiro até então.
     Qual seria essa norma? Bem... acho que já ultrapassamos aquele estágio em que eu deveria ter vergonha de falar sobre mim não é? Pois bem, te direi. Eu jamais dormia em outra cama que não fosse a minha. Não importa onde minha noite começasse, eu saberia que ela acabaria em meu quarto. Seria o momento em que eu encararia o espelho, às vezes orgulhoso por mais uma noite de sexo casual satisfatório; talvez indignado, sentindo o vazio inerente a esse tipo de relacionamento.
     Seja como for, eu sempre acordava da mesma forma: mal humorado, porém disposto para seguir a rotina. E assim minha vida seguiria, não fosse aquela noite de maio em que te conheci. Serias apenas mais uma. Mais uma noite de sexo sem compromisso, sem significado. Contudo, me surpreendestes. Em tudo. E o quando teus olhos brilharam tudo teve sentido. Não era aquele brilho de prazer orgástico que eu costumava ver em outros olhos. Havia verdade, havia desejo, havia algo que eu desconhecia. Não bastasse isso, todos os teus gestos me surpreenderam. Teu abraço carinhoso. A forma como teu corpo pedia ao meu para que ficasse.
     Tive a certeza de que nada era como antes no momento em que você apareceu à porta trazendo o café da manhã. Imaginei estar sonhando. Mas, era real. Tive certeza disso quando fizemos amor uma vez mais. Não preciso dizer que meu dia estava sendo totalmente diferente do habitual. Isso me fez sentir ótimo. E eu queria mais. E mesmo passando a semana inteira contigo, eu julguei ser pouco. É como se na tua ausência o tempo não passasse. E após a noite passada eu tive a certeza.
     Sei que talvez isso soe estranho, mas não quero te assustar. Sinto algo por ti que não consigo definir. Apenas sei que quero estar contigo enquanto eu viver. Quero ver o brilho dos teus olhos até o fim de meus dias. Quero o teu abraço perfeito. Quero adormecer e acordar sabendo que isso tudo é real. Quero casar com você. Você quer casar comigo?
     Ela não respondeu. Apanhou o celular que estava sobre a cama entre os dois e pareceu digitar alguma coisa.
     Aflito, ele insistiu. “Quer casar comigo? Sim ou não?”
    Ela pediu que ele aguardasse um instante. Em seguida respondeu:
     “De fato, suas palavras me soaram verdadeiras. Posso dizer que os momentos que estivemos juntos foram ótimos. Como já haviam me dito, és um excelente amante.”
 
     Ele pareceu não entender as últimas palavras. - “Como assim? Quem lhe disse o que?”
    “É... neste momento preciso ser bastante sincera com você. Você saiu com algumas das minhas amigas e, há mais ou menos um mês, uma delas ficou bastante triste após ter sido usada por você. Elas diziam que você merecia uma lição. Mas, te julgavam à prova de tudo. Foi então que, ao questioná-las, me desafiaram. Na verdade fizemos uma aposta. Eu deveria conseguir manter um relacionamento com você por mais que uma noite. Provar que você poderia se envolver. Mas, acabou sendo melhor do que eu esperava.”
     Ele apenas a observava boquiaberto sem acreditar.
     Ela continuou:
     “Acabei de enviar para as minhas amigas, a gravação de tudo o que você me disse agora, assim como o pedido de casamento. Imagino o quanto elas devem estar se divertindo agora ao escutarem que você caiu tão bem em um orgasmo fingido. Deve ser doloroso para você ouvir isso. Mas, é a vida, o que se pode fazer?”
     Realmente, não havia nada a ser feito. Ele apenas se levantou em silêncio. Olhou-a nos olhos novamente. Os olhos dela ainda brilhavam, mas não como antes. Agora eles não apaixonavam, ofendiam, ironizavam. Ele vestiu suas roupas saiu sem dizer nada. Mesmo porque, o que poderia ser dito?

Fonte Imagem: http://www.abril.com.br/imagem/relacionamento-segredo-05g.jpg

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Prisioneiro

     “Se eu me arrepender agora, serei perdoado?” – perguntou Marcos.
     “Não tem volta. Sua sentença já foi prolatada. Não existe possibilidade de perdão.” – respondeu o guarda.
     “Ótimo. Mesmo porque, seria inútil me arrepender de um crime que não cometi. Não é mesmo?”
     “Ainda insiste nisso. Cale a boca e me diga logo o que vai querer para sua última refeição.
     “Tudo bem. Quero o feijão que minha mãe fazia. Aquele que eu costumava comer a cinco anos atrás, antes de vocês me prenderem. Mas, espere. Isso agora é impossível, não? Será porque ela faleceu há dois anos e eu sequer pude dar-lhe o último adeus? Enfim, quanta hipocrisia você me oferecer um último desejo vil em troca de tudo aquilo que vocês me roubaram.” – Falou com uma ironia áspera.
     “Dane-se. Daqui a poucas horas você não vai mais poder se lamentar. Tanto faz se sua barriga vai estar cheia ou vazia.”
     Após dizer isso o guarda seguiu pelo longo corredor que separava aquela ala das demais deixando Marcos sozinho. A contar daquele instante, ele tinha pouco mais de 3 horas vida. Como não havia manifestado desejo por uma última refeição, passaria aquele curto tempo com a certeza de não ser incomodado. Mas o que se passa pela cabeça de um homem que sabe que cada segundo é um passo dado rumo ao abismo que o separará para sempre da vida que conhece?
     No caso de Marcos isso pouco importava. Já estava morto há tempos. O que se seguiria seria uma mera formalidade para afirmar a quem duvidava que, de fato, já não havia vida naquele homem. Aquele olhar vazio denotava perfeitamente o desejo de já não existir. O ódio que, a princípio, se apoderara de Marcos, já havia perdido forças e se via vencido pela conformidade. Não havia nada a ser feito. Como pode um homem lutar contra as imposições de quem detém o poder? Impossível.
     Há poucos anos, a vida era diferente para Marcos. Crescera em uma favela da periferia da cidade. Vítimas das contradições sociais, vivenciou de perto os problemas que só afetam às classes baixas. Ainda na infância perdeu o pai vítima de uma bala perdida. Perdeu alguns amigos para o tráfico. Outros para a violência comum das grandes cidades. Todos imaginavam um futuro semelhante para ele. Mas ele queria mais para si. Queria vencer esse mundo injusto do qual era parte.
     Embora fosse de família humilde, ele prometera para si desde o início que um dia seria alguém. Esforçava-se para isso. Um futuro o aguardava na faculdade. Engenharia era o curso escolhido. Seria o primeiro da família a “alcançar o nível superior”. Sua mãe orgulhava-se, afinal, todos a julgavam incapaz de criar um filho, sozinha, depois que ficou viúva. Mas, ela provou o contrário. Aos dezoito anos, Marcos estava no último ano do ensino médio e todos os professores previam um futuro promissor para o rapaz.
     Faltavam dois meses para a prova do vestibular, quando um professor de física ofereceu a Marcos uma bolsa em um dos melhores cursinhos da cidade. O rapaz aceitou sem nem pensar. A mãe, embora orgulhosa, demonstrou receio quanto a tal proposta. Temia que Marcos sofresse algum preconceito por ser de pobre ou, o que era mais fácil, por ser negro. Mas, após muita insistência ela permitiu.
     E veio o primeiro dia de aula. Marcos saiu de sua casa na periferia da cidade e após tomar três conduções conseguiu chegar ao cursinho. O professor o aguardava à entrada do lugar. Talvez porque temia que o porteiro fizesse o rapaz passar por algum constrangimento. Desde a entrada Marcos despertou olhares. Talvez fosse o primeiro negro a adentrar aquele ambiente. As pessoas apontavam para ele e comentavam entre si.
     “Ignore-os. Isso acontece com qualquer novato. Lembre-se porque está aqui. Não deixe que ninguém fique entre você e seus sonhos. Concentre-se nas aulas e tudo dará certo.” – Disse o professor na tentativa de tranqüilizar o aprendiz.
     De fato, Marcos ignorou qualquer recepção hostil e manteve o foco nas aulas. Respondeu a perguntas, tirou dúvidas. Atraiu olhares para si, alguns de admiração, mas muitos de inveja. Após responder uma pergunta, foi presenteado com um livro por um dos professores, como uma espécie de incentivo. A alegria foi tamanha que ao término da aula o rapaz saiu correndo. Queria chegar logo em casa para contar à mãe como foi seu dia.
     Já havia caminhado três quarteirões e estava na metade do caminho até a parada de ônibus quando lembrou que havia esquecido o caderno embaixo de uma das cadeiras. Voltou correndo para apanhá-lo antes que o porteiro fosse embora. Já estava escuro e a rua estava deserta. Quando estava a poucos metros do cursinho ouviu um gemido. Conteve os passos. Olhou para o lado e viu um beco que ficava ao lado de um prédio de luxo. Aproximou-se da entrada e pode ver caído sobre uma pilha de lixo, um rapaz, mais ou menos da sua idade, agonizando ensangüentado.
     Marcos correu para socorrê-lo. Tomou-o nos braços. Em seus últimos suspiros o rapaz se debatia espalhando sangue por toda a roupa de Marcos. Este decidiu correr para pedir ajuda. Correu em direção à saída do beco, mas, antes que chegasse até a rua, uma viatura da polícia parou. Ele tentou alertar aos policiais, mas eles sequer quiseram ouvi-lo. Jogaram-no ao chão e lhe desferiram vários golpes antes de algemá-lo. Enquanto isso, outro policial caminhou até a pilha de lixo e encontrou o outro garoto, já sem vida.
     Marcos foi autuado em flagrante sem qualquer chance de defesa. Enquanto sua mãe não chegou à delegacia, foi torturado por vários policiais que queriam uma confissão. Marcos era inocente, mas só sua mãe acreditava nele. Não havia provas da autoria do crime. Contudo, como o rapaz assassinado era filho de família influente, Marcos permaneceu preso. Entre todo o processo, decorreram três anos desde o ocorrido até o dia do julgamento.
     Chegado o dia, a defesa não havia consegui reunir muitas provas da inocência de Marcos. A acusação, pelo contrário, tinha várias provas. Desde a faca utilizada para esfaquear a vítima, que não continha digitais ou qualquer vestígio que provasse ter sido usada por Marcos; até mesmo um vídeo da câmera de segurança do prédio adjacente ao beco, que mostrava imagens de um rapaz negro mais forte, que trajava uma camisa de cor diferente da que Marcos usava no dia, arrastando a vítima para o beco.
     Por si só, essas provas já invalidavam a acusação contra Marcos. A defesa tentou reafirmar a inocência pedindo para que o vídeo da câmera de segurança fosse adiantado alguns minutos, até o instante que mostrava o verdadeiro assassino saindo do beco e, depois, o momento em que Marcos entrou para ajudar o rapaz. Porém, esses instantes haviam sido apagados. Segundo disseram, a câmera havia dado defeito.
     A defesa não conseguiu nenhuma testemunha. Talvez porque ninguém queria depor a favor do rapaz pobre que não pertencia ao bairro onde o crime aconteceu. Porém, a acusação trouxe várias. Diversos amigos da vítima que alegaram que o jovem assassinado tinha envolvimento com drogas e que devia para traficantes. Alguns chegaram até a apontar Marcos como o traficante. Diante disso, a acusação induziu o tribunal a pensar que tudo era apenas mais um crime de acerto de contas. Que o jovem traficante da favela havia ceifado a vida do pobre rapaz de classe média por uma quantia irrisória qualquer, fruto de uma atividade ilícita.
     Em face de tais argumentos, e do fato de que o juiz havia sido corrompido pela família da vítima, Marcos foi condenado à pena de morte por injeção letal. Esta sentença, cruel e extremamente arbitrária, apenas refletia os traços da sociedade do país do ocorrido. A elite detinha o controle de tudo e sua vontade era perpetuada enquanto seu poder financeiro pudesse arcar com os caprichos dos “poderosos”.
     A defesa tentou recorrer, mas sem sucesso. A condenação foi demais para a mãe de Marcos. Cardíaca, ela acabou passando mal. Uma ambulância levou-a até o hospital, porém, a deficiência do sistema de saúde público acabou por fazê-la sua vítima. Marcos soube a notícia na cadeia. Privado de sua liberdade, ele teve que lamentar em sua cela. A data da execução foi agendada para dois anos após o julgamento. Segundo rumores, porque a família da vítima exigiu tal prazo. Decerto queriam que o rapaz sofresse as mazelas do sistema penal antes de perder a vida.
     E assim Marcos permaneceu padecendo enquanto aguardava sua sentença definitiva. Blasfemava, indagava aos céus o motivo de tamanha injustiça. Mas a revolta logo se desfez. De nada adiantaria. Por mais que quisesse, não podia ir contra o “sistema”. Do rapaz alegre e esperançoso de outrora, já não restava nada. Era apenas um ser vazio, indigno até das coações dos demais presos.
     Marcos olhava as nuvens que apareciam através das grades da cela quando sentiu que alguém chegara à porta da cela. Era o guarda que vinha informa-lhe que seu dia havia chegado. Este lhe explicou o procedimento que seria utilizado, como se saber que dormiria antes de morrer fosse tranqüilizar Marcos. Um breve diálogo se seguiu entre ambos até que Marcos se viu sozinho novamente.
     Em sua solidão ele aguardava o passar do tempo. Já estava preparado para aquele momento desde o dia em que sua mãe havia falecido. Desejava a morte como se ela fosse uma linda virgem a atirçar-lhe a libido. Então as grades se abriram. Era chegado o momento. Caminhou pelo corredor de olhos fechados. Esperava dormir para não mais acordar. Ou então, como ele havia se convencido, acordaria enfim daquele pesadelo. Em instantes abraçaria sua tão amada mãe e esqueceria essa vida. Já não seria mais prisioneiro das injustiças.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Liberdade

     "Eis as provas. Basta abrir o envelope e as duvidas já não habitarão seus pensamentos."  – Disse o detetive, após deixar o envelope sobre a mesa da lanchonete em que se encontrara com Miguel.
     Este observou o pacote por alguns instantes. Em seguida pôs outro envelope sobre a mesa, o qual o detetive apanhou com ligeireza. Ambos abriram os pacotes ao mesmo tempo. As reações foram completamente dispares: o detetive sorria ao conferir as cédulas que retirara de seu envelope; Miguel deixava escapar lágrimas silenciosas enquanto observava calmamente as fotos que retira do seu.
     As imagens eram parecidas. Os mesmo elementos as compunham: o quarto era o mesmo, a mulher também, o homem idem. O elemento distinto de uma foto para outra eram as roupas que os personagens usavam, o que denotava uma sucessão de dias. A mulher era Ângela, esposa de Miguel; o homem Renato, um conhecido do homem que observava as fotos. As imagens eram comprometedoras, a priori mostravam os dois trocando carícias, porém a última fotografia mostrava-os transando sobre a cama.
     Percebendo as lágrimas de Miguel, o Detetive principiou uma frase de consolo, mas bastou um olhar de seu cliente para que percebesse que o melhor que seu silêncio era mais conveniente ao momento. Miguel levantou-se. Deixou sobre a mesa algumas notas para que o outro pagasse a conta e saiu. Seus passos eram firmes, confiantes. Mas as lágrimas insistiam em escapar de seus olhos. Entrou no carro obstinado. Apanhou a arma que estava no porta-luvas, conferiu as balas. Partiu sem pressa rumo ao prédio em que residia.
     Aquela era uma manobra atípica. Miguel deveria estar trabalhando naquele horário. Mas, conseguira a tarde de folga após negociar com seu chefe. Passados três meses de investigações, Miguel enfim tinha certeza. Era esta quem o guiava agora. Se o Detetive não estivesse enganado, aquele era o horário em que os dois costumavam se encontrar. Mais alguns minutos e eles seriam flagrados. Não haveria como argumentar. Miguel ainda vertia lágrimas, mas seu olhar parecia mais sereno.
     Ao chegar, Miguel avistou o carro de Renato parado na vaga de estacionamento do vizinho. Estacionou o carro em sua vaga costumeira. Usaria o elevador, mas preferiu as escadas. Talvez quisesse um pouco mais de tempo para refletir sobre o que faria. As lágrimas já haviam cessado. Apenas a mão esquerda tremia segurando o revólver. Após subir as escadas, Miguel atravessou o corredor que levava ao seu apartamento. Enquanto caminhava, observou a porta do apartamento vizinho e pareceu hesitar. Mas seguiu em frente.
     Assim que entrou na sala de seu apartamento, Miguel notou o som abafado que vinha do quarto. A porta estava fechada, mas ainda assim era possível escutar os gemidos. Ele caminhou até o lugar de onde vinham os sons. A mão que segurava a arma já não tremia. Com a outra mão ele abriu a porta e adentrou rapidamente. O casal foi tomado pelo susto. Os dois o olhavam com a arma em punho. Os gemidos libidinosos de Ângela agora eram substituídos por um choro amedrontado. Renato pedia a Miguel que ele se acalmasse. Ângela tentava, em meio às lágrimas nervosas, esboçar um pedido de perdão.
     O olhar frio e a expressão firme no rosto de Miguel conseguiam ser ainda mais assustadores que a arma que ele tinha em mãos. Renato e Ângela, que outrora partilhavam do prazer, agora dividiam a certeza de que morreriam. Miguel caminhou até a cama onde os dois tremiam envoltos no lençol molhado de suor. O casal fechou os olhos e se abraçou. Morreriam juntos. Esperaram o som dos tiros. Mas tudo o que escutaram foi o “adeus” de Miguel. Abriram os olhos e puderam vê-lo saindo pela porta. Ele havia deixado a arma sobre a cama.
     O casal não entendeu o significado daquilo. Ângela estava estática, temendo que Miguel retornasse para enfim matá-los. Renato imaginava que ele o estaria aguardando para um duelo ou coisa parecida, por isso havia deixado aquela arma. Mas ambos estavam enganados. Miguel jamais voltaria. Após cruzar a porta do quarto, ele trazia um inexplicável sorriso de felicidade no rosto.
     Atravessou o corredor e parou diante da porta do apartamento vizinho. Bateu à porta, ansioso. O homem que a abriu tinha um olhar aflito, que clamava pelas palavras que Miguel tinha a dizer. Mas, antes de dizer qualquer palavra, este lhe beijou os lábios com emoção. Mas o rapaz queria alguma resposta, e só ficou satisfeito quando Miguel sussurrou em seu ouvido:
     “Acabou. Acabou o fingimento. Agora somos livres. Já não preciso viver com ela. Chega dessa farsa. Enfim serei feliz.”
     O rapaz esboçaria ceticismo, mas o brilho no olhar de Miguel não mentia. Ele falava a verdade. Enfim os dois poderiam assumir para o mundo o que há tantos anos escondiam. Miguel já não precisava fingir. A vida de antes ficara para trás. Aquele envelope de fotos fora sua carta de alforria. As lágrimas, o grito silencioso de liberdade. A arma abandonada, o último resquício de uma vida não lhe pertencia. Miguel enfim era livre para viver aquele amor.