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quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Cotidiano

     São 9 da manhã. Carlos segue em seu carro por uma das avenidas mais movimentadas da cidade. Vidros fechados, ouvindo música clássica. O distinto empresário segue rumo ao trabalho, quando tem a atenção roubada por uma bela mulher que aguarda, em pé, na calçada, o sinal fechar. O nome dela é Ângela. Enquanto espera, ela repassa na memória os momentos da noite anterior. O jantar, os olhares, a melodia ao fundo, os beijos, o sexo. Um sorriso surge em seu rosto, ela está apaixonada. Percebe que encontrou o homem da sua vida: Henrique.
     Neste exato momento Henrique se arruma para ir trabalhar. Está atrasado, mas por um bom motivo: a mulher linda e insaciável com quem esteve lhe deu uma noite digna de ser narrada com detalhes ao pessoal do escritório. Mas ele não voltará procurá-la, foi apenas uma aventura. Seus pensamentos estão mais voltados para a reunião que terá em poucos minutos. É o momento de apresentar seu projeto, precisará impressionar os superiores, em especial, Marcos.  
     Marcos, o presidente da empresa e acionista majoritário. É um dos grandes nomes da região, reconhecido nacionalmente por seu desempenho nos negócios. Neste exato momento, Marcos está retornando à cidade em um vôo vindo da Europa. Em poucos minutos chegará, mas seu pensamento segue distante. Pensa nos problemas que abalam sua família. O excesso de trabalho lhe rendeu renome e finanças, mas o distanciou daquela que ama. Pensa em como fará para reverter as coisas e convencer Karen a desistir do divórcio.
     Karen observa o horizonte pela janela de seu quarto. Está dividida. Lembra de todos os momentos vividos com Marcos. Não sabe se ainda o ama, ou se aquilo é apenas nostalgia de algo distante que ser perdeu no tempo. Talvez as coisas fossem diferentes se ele não a houvesse deixado tão sozinha. Os negócios estavam sempre em primeiro plano. Quando ela reclamava por atenção, ele tentava concertar as coisas com jóias e flores. Era culpa dele se ela havia pedido o divórcio. Era culpa dele se ela havia se entregado completamente a Daniel.
     Daniel é um dos sócios de Marcos. Sempre desejou ter tudo o que este possuía: o sucesso, a fortuna, a mulher. Dentre todos, Daniel conseguira o principal: Karen. Seduzi-la não havia sido difícil. Ele sabia de sua carência. Agora seus planos corriam conforme esperado. Enquanto segue rumo à empresa, tenta imaginar qual será a reação de Marcos ao saber que ele tomou sua esposa. Mas pretende contar isso antes da reunião. Assim que chegar, mandará André solicitar a presença de Marcos em sua sala.
     André é o assistente de Daniel. Rapaz jovem, universitário, cheio de pretensões. Ele está há menos de um mês no emprego, mas já percebeu que não será fácil ascender na empresa. Além de ser assistente, ainda faz o trabalho de Office boy. Isso faz com que precise acordar bem cedo todos os dias para despachar documentos antes de iniciar o expediente. Neste momento, André caminha apressado pela rua para fazer sua ultima entrega da manhã.

     Então, André avista uma mulher linda, parada do outro lado da calçada. Impressiona-se tanto com a beleza da moça, que nem se dá conta que o sinal ainda não fechou. Atravessa a rua, displicente, e é atropelado por um carro que vinha em alta velocidade. O motorista do carro é Carlos, que seguia para o trabalho com os vidros fechados, ouvindo música clássica, quando teve a atenção roubada pela bela mulher parada na calçada e não notou que o sinal estava amarelo. Esta mulher é Ângela, que aguardava o sinal fechar enquanto pensava na vida, na noite passada, alheia a tudo o que acaba de causar.

Fonte Imagem: http://indirectas.files.wordpress.com/2011/03/sinal-amarelo.jpg

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Vida

     Já me vejo sem fôlego, faltam-me forças para prosseguir na escalada.  Mas, não vejo isso com maus olhos. Creio que estou em um lugar bom: se olho para baixo, vejo aqueles que, como eu um dia também o fiz, sobem ansiosos; se olho para cima vejo os abençoados que continuam subindo cada vez mais, eles acenam para mim, encorajando-me a prosseguir; se olho para os lados, percebo que não estou sozinho, muitos outros estão na mesma condição que eu.
     Enfim compreendo a ironia disso tudo. Quando eu era jovem, escalava depressa, a passos largos. Não me preocupava muito com quem estava abaixo de mim, ignorava os que estavam acima. Coisas da juventude que só fazem sentido uma vez na vida. Hoje percebo o quão tolo fui. Em minha ânsia, ignorei o sentido da escalada, preocupei-me somente com o trajeto. Esse foi meu erro.
     Mas, agora não há mais porque ter pressa. Aqui onde estou o ar se torna rarefeito, cada respiração é uma dádiva.  Os prazeres mais fugazes ganham valores antes inimagináveis. O pôr-do-sol tem tons mais bonitos. Ou não. Talvez seja o mesmo de antes, a diferença é que eu jamais o havia reparado como agora. Aliás, a vista que se tem daqui é indescritível. Pergunto-me se já não é tarde para querer aproveitar isso tudo.
     Ouço gritos vindos de baixo. Eles dizem para eu não desistir. As vozes são conhecidas, são aqueles que amo: filhos, netos. Mas, confesso não ter o desejo de insistir nisso. Cheguei naquele momento da escalada em que tudo se resume a uma grande nostalgia. A saudade já me tomou em seus braços e me tortura, sussurrando ao meu ouvido o nome daqueles que um dia estiveram ao meu lado, mas que já não estão mais aqui.
     Já me percebo obsoleto, incapaz de adaptar-me ao que é normal para os demais. Em meus delírios solitários, recordo um passado áureo que talvez jamais tenha existido. Fantasio que antes as coisas eram mais belas, os sabores mais encorpados, as cores mais suaves. Sou apenas mais um elemento anacrônico em meio a isso tudo. Mais um que destoa sem querer, mas que se esforça para não ficar para trás.
     Como fosse ontem, recordo o início disso tudo. Tudo era novidade, eu subia com calma para não perder nem um detalhe pelo caminho. Fazia o certo sem ter consciência disso. Mas em pouco tempo me concentrei no trajeto e esqueci tudo. Quisera eu voltar ao início, refazer meu percurso. Talvez não chegasse até aqui, mas com certeza não estaria solitário. Há muitos outros a minha volta, porém permaneço abraçado à solidão.
     Chamar-me-ão de pessimista, mas devo dispor de sinceridade e assumir-me realista. Afinal, a vida é assim, essa escalada por uma montanha infinita. Alguns sobem mais, outros menos. Mas todos partilham do mesmo infeliz destino: não importa o quanto se esforcem, o quão longe cheguem, jamais atingirão o cume.  

Fonte Imagem: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgFfYsmldErqWSS_I9q8RyjjWm9uXaM_xHS6DuS2vRLrJGcCDX8oOnpzRGJhpaOQAq_h3gWrwKKbZWEzqYyyOlGPHBrFHy0t1X9OXDm8cFHVR0k67cvzCZ0DULxdkUUt8DcCAqXT1ZnhwOh/s1600/escalada-1.jpg

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Desejo Indomável

Serias mera embriaguez passageira.
Dessas que o coração desconhece.
Que, pela fugacidade, não enternece,
Mas satisfaz a vontade lisonjeira.

Mas ao destino rédeas não se impõe.
E o desejo se fez deveras indomável,
Rendendo a razão ao carinho amável,
Que a ela facilmente se sobrepõe.

Foi por ceder a tal impetuosidade
Que dessa vida conheci as cores
E de teus beijos a doce necessidade.

Pois só eles saciam-me os ardores,
Que breve torna a eternidade
Para vivenciarmos os nossos amores.



domingo, 9 de outubro de 2011

Infame

     Rasgar-lhe as roupas não era suficiente para mostrar-lhe meu desejo. E eu a beijei, mordi seus lábios, pressionei-a contra a parede e tudo aquilo parecia excitá-la mais que a mim. Surpreendi-me, isso jamais acontecera. Podia sentir o sangue que pulsava por aquelas veias, indo em direção ao coração sobressaltado, que elevava aqueles seios a cada respiração. Os olhares de volúpia dela me guiavam pelas ruas de seu corpo. Os leves gemidos controlavam o ritmo de meus passos, ora apressados ora serenos.
     Foram meses de namoro até aquele momento. Esperei até o último instante porque a amava. Mas a tentação sempre esteve entre nós, atiçando-nos a cada beijo, a cada abraço mais caloroso. Por vezes resisti, reprimi meus desejos. Resistiria um pouco mais, mas ela já não compreendia minha relutância. E eu confesso que também já esboçava minhas fraquezas. Ela decidiu que seria hoje. Eu nada pude fazer. Como um homem poderia enfrentar uma vontade feroz que o persegue por dentro e por fora?
     Seria apenas uma visita costumeira, mas ela estava sozinha e quando dei por mim já estava entorpecido por aqueles lábios. Ela parecia em transe. Suas mãos corriam por meu corpo sem se preocupar com os rastros que as unhas deixavam. Ela jamais emanara tanto calor. O ardor daquela chama contagiante não encontrou qualquer resistência em mim. Então, inevitavelmente, “incendiamos”.
     Deitada sobre mim, ela mexia os quadris com violência sem sequer descolar os lábios dos meus. Eu podia sentir que ela estava tão desejosa quanto eu. Talvez mais. Ela gemia como se seu corpo fosse pequeno demais para conter tanto prazer. Ela agarrava os lençóis e mordia os lábios com força. Era como se tivesse dentro de si uma fera, há muito aprisionada, querendo libertar-se. Não havia nada daquela menina doce e calma de sempre. Era outra mulher, indomável, voraz.
     Entretanto, eu não partilhava daquele frenesi de prazer. E eu sabia bem o porquê. E tudo seguiria bem, até ela perceber. Porém, não havia como fingir um orgasmo. A princípio, ela sentiu-se incapaz, mas, a vontade de me satisfazer era maior que tudo. “Sou sua, faça comigo o que quiser”, disse-me. Palavras convidativas, desafiadoras. Talvez eu soubesse o desfecho daquilo, mas não ceder era impossível. Quem conseguiria?
     Ela não entendeu quando eu peguei aquele lenço e envolvi em seu pescoço. Mas percebeu que aquilo me excitava e embarcou na fantasia. No início eu apertava o lenço com calma, ela parecia gostar da breve asfixia. Porém, à medida que eu era dominado pelo prazer, perdia o controle sobre a força que exercia. Até o momento em que ela cravou as unhas em meus braços, uma tentativa desesperada de fazer-me cessar. Porém o clímax estava próximo, eu não iria parar.
     Ela já não tinha fôlego para falar ou gemer. Seu corpo já parecia desfalecer. Seus olhos já não brilhavam, aquela chama estava se extinguindo. O seu último suspiro de vida coincidiu com meu primeiro suspiro orgástico. Enfim eu estava satisfeito. Porém, uma vez mais, meu prazer viera acompanhado da tragédia. Sobre a cama jazia mais uma vítima de minha luxúria. A história se repetira como nas últimas duas vezes.
     Fugir me parecia a melhor opção. Recomeçar em outro lugar, viver outra vida. Porém, a história acabaria se repetindo. Mesmo porque, um homem pode fugir de tudo, menos das maldições que habitam sua essência. Decidi que me entregaria àqueles que têm por função zelar pelo “bem” da sociedade, afastando do convívio social todo aquele que haja em desacordo com as convenções hipócritas estabelecidas.
     Mas, como já havia lhes dito, eu amava aquela mulher. E não é o fato de ela estar morta que me faria amá-la – desejá-la - menos. Vamos, não façam essa expressão de espanto. Mesmo morta ela me deu tanto prazer quanto eu podia desejar. Aquele corpo frio roubava meu calor como se quisesse ressuscitar. Decerto dirão agora que sou infame. Mas, vos digo isto se resume a uma questão de preferências. Todos possuem gostos distintos, isso é o normal. Entretanto, culpam-me apenas porque o meu destoa daquilo que a maioria estabelece como sendo normal.
     Enfim, cá estou confessando meus crimes. Narraria os detalhes dos outros dois cometidos há algum tempo atrás, mas a memória não me deixaria ser tão fiel como fui agora ao contar o acontecido de uma hora atrás. Sei que serei preso pelo que fiz. E não ouso desejar que um dia seja perdoado. Mas, o que posso fazer se esta é minha natureza? Aceito ser condenado, mas somente se houver em suas prisões um modo de concertar uma essência que já nasceu “corrompida”.


Fonte Imagem: http://ima.dada.net/image/medium/273296.jpg