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sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Consciência

Foi possível ver o brilho da luz, refletida na lâmina da faca, aparecer pelo menos umas dez vezes até que esta fosse completamente tomada pelo rubro sangue. Precisar o número golpes seria impossível. Contudo, a julgar pela respiração cansada do homem que a empunhava, presumir-se-ia que foram muitos. Ele se recompôs sentado sobre o corpo desfigurado, outrora vivo. Cessada a fúria bestial, o ar trouxe de volta ao cérebro a racionalidade que fora lançada ao espaço. O olhar surgido foi de arrependimento. A quem duvidasse, as palavras esclareceram.


- Meu Deus, o que eu fiz? Matei minha esposa! Como pude? Eu sou um monstro. – Desesperou-se, fechando os olhos para evitar contemplar o que fizera.

- Calma, meu rapaz. As coisas não são tão graves. – Disse-lhe uma voz.

- Não? Como não? Olhe esse sangue, olhe pra ela. Não consigo sequer reconhecê-la agora.

- Realmente, ela já foi mais bela. Mas, tenha calma. Não foi você quem a matou.

- Olhe essa faca em minhas mãos. Olhe o sangue em minha roupa. Quem a matou então?

- Eles a mataram!

- Eles? Quem são eles?

- Todos eles. Até mesmo ela é culpada. Você não! Você é a vítima dessa história, acredite.

- Você está louco! – O brado ecoou no recinto.

- Louco? Sou a voz da sanidade que quer te mostrar a verdade. Você só precisa abrir os olhos e enxergar. Você não é culpado de nada. Você segurou a faca, mas foram eles quem a apunhalaram.

- Não consigo entender. O que você está tentando fazer?

- Não quero fazer nada. Apenas estou tentando te mostrar a verdade. Abra sua mente. Procure pelas respostas.

- Respostas? Como encontrarei as respostas sem sequer saber quais são as perguntas?

- Acalme-se. Porque ela está morta agora? Que razão te fez pegar essa faca e tirar-lhe a vida?

- Ela me traiu! Por isso.

- Você a viu com outra pessoa?

- Não!

- Então como sabes que foste traído?

- O Emanuel me contou. Zombou de mim, aquele infeliz. Disse ainda que todos se riem de mim pelas minhas costas.

- Entendo. Mas era verdade o que o Emanuel contou?

- Não sei.

- Você não perguntou para ela?

- Perguntei. Ela não respondeu. Deu um sorriso debochado e perguntou se eu enlouquecera.

- Percebes? Não és o culpado, eles o são. O Emanuel, que criou em ti a dúvida. Ela por não esclarecê-la. Se não fossem eles, não terias feito isso. Talvez, ela desejasse isso. Por isso sorriu, provou tua fúria. Foste apenas manipulado.

- Mas, eu quis matá-la. Pelo menos, naquele instante eu quis. Mas, agora me arrependo.

- Esse arrependimento é o que prova o que eu digo. Se te arrependes, é porque não querias realmente matá-la. Foste impelido por algo mais forte, momentâneo, que te levou a isso. Não somos uma má pessoa, foram eles quem nos incitaram a isso.

- Pensando bem. Talvez estejas certo. Mas, e agora?

- Agora você precisa se vingar deles. Ela já foi punida pelo mal que causou. Mas ainda falta o Emanuel, e todos os outros.

- Mas quem são os outros.

- Todos quantos puderes te vingar. Eles são maus, nós devemos puni-los pelo mal que nos causaram.

- Isso não me parece certo.

- Certo ou errado. Tudo depende do ponto de vista. Ouça o que digo. Se parece errado, é apenas porque alguém conseguiu te convencer que o oposto era o certo. Entende como tudo isso é frágil?

- Talvez. Mas se isso for verdade, minha vida inteira foi uma grande ilusão.

- Isso! Enfim entendeste. Estou aqui para te libertar. Tenho te observado calada há muito. Mas agora é a nossa hora. Vamos fazer o certo. O que nos parece certo.

- Sim. Você me ajuda? Você vem comigo?

- Sempre!

- Mas... Quem é você?


- Ninguém. Apenas sua consciência.


terça-feira, 29 de outubro de 2013

Mudança

Ele acendeu um cigarro e se sentou em uma cadeira posta junto à janela. Ficou então a observá-la arrumando a cama. Permaneceu em silêncio por alguns segundos. Por fim, deu uma tragada profunda e iniciou.


- Há algo de errado. – Afirmou.

- Errado? Com o quê? – Indagou surpresa, demonstrando muito mais interesse no cobertor que dobrava.

- Com o sexo.

- Foi ruim?

- Não. Mas também não foi bom.

- Como assim? – Perguntou, agora o olhando nos olhos.

- Não foi bom como costumava ser a dez anos atrás, quando nos conhecemos.

- Ah sim. Pois é... há dez anos éramos mais jovens. O tempo passou, as coisas mudaram. – Respondeu com certa ironia.

- Não. Você não está entendendo. Não foi esse tipo de mudança. Até pouco tempo eu podia sentir algo mais que prazer. Até pouco tempo, fazíamos amor. Hoje sinto que é só sexo, sem qualquer significado.

- Não sei por que você pensa isso. Ainda fazemos amor. Amo você tanto quanto antes.

- Desculpe, mas não é o que eu sinto. Tenho a sensação de que cedo ou tarde tudo vai acabar e eu serei pego de surpresa.

- Deixe de tolices. Você sabe que isso não vai acontecer.

- Então porque eu sinto esse vazio?

- Talvez você esteja esperando que eu seja algo que jamais poderei ser.

- Não é isso. Eu já me conformei com as coisas como elas são. É que... não sei...você às vezes parece distante.

- A vida não é mais tão simples. Você sabe disso. Temos problemas que às vezes tomam nossa atenção, mesmo quando não queremos. São contas a pagar, filhos a educar.

- Mas havíamos combinado que quando estivéssemos juntos esqueceríamos tudo.

- Eu sei, eu sei. Mas é que...

- Eu só quero que você se entregue a mim.

- Perdão. Tenho falhado com você. Prometo que não vai mais acontecer. É você quem eu amo, nunca esqueça isso.

- Também amo você. – Sorriu satisfeito.

- E então? Mais uma vez? – Perguntou ela com um olhar promíscuo.

- Sempre.

Os corpos se abraçaram e, assim que os lábios se tocaram, o barulho do motor de um carro, que se aproximava, pôde ser ouvido. Os dois se entreolharam e trocaram uma mensagem silenciosa. Apanharam as roupas jogadas ao chão rapidamente e começaram a se vestir. Ela agradeceu por ter arrumado a cama, não esperava que o marido chegasse tão cedo.

Ele a beijou uma última vez, subiu na cadeira onde outrora estivera sentado e pulou a janela. Caminhou pelo jardim envolto na escuridão da noite. Antes de pular o muro, olhou para trás. Através da janela, pode vê-la beijando o marido que acaba de chegar. Era um beijo caloroso, com paixão e saudade. Era daquilo que ele sentia falta. Não importava o que ela havia dito, estava vendo agora que, realmente, havia uma mudança: ela já não o amava; amava o próprio marido.

Uma lágrima correu lentamente por seu rosto: fora traído.




terça-feira, 17 de setembro de 2013

A criatura

Quando dei por mim, corria por um beco escuro, sem fim. Faltava-me o fôlego, pensei em parar. No entanto, olhei para trás. Foi então que a vi, não nitidamente, apenas o vulto de seu manto sujo e esfarrapado aproximando-se, estendendo a mão, tentando apanhar-me a todo custo. O desespero agarrou-se a mim, obrigando-me a correr ainda mais. À minha frente, uma bifurcação surgiu, escolhi um lado esperando despistá-la, mas logo depois ela apareceu em meu encalço. Estava determinada a me capturar.


Como não vira seu rosto, não sabia quem me perseguia. Não era de meu conhecimento também o porquê eu era sua presa. Sentia um medo tão forte que não desejava obter respostas para as perguntas que a minha mente insistia em fazer. Não existe temor mais forte que o que é inspirado pelo desconhecido. E logo eu, que sempre me julguei corajoso. Naquele instante, percebi que corajosos são aqueles que ainda não descobriram o que realmente temem. Eu, enfim, encontrara. A inédita sensação não era das melhores, confesso.

A luz era parca, parecia brotar do chão em poucos pontos. Não tendo a plena visão, aguçaram-se meus outros sentidos. O lugar tinha um cheiro forte, não necessariamente ruim. Era do tipo que inebria, entorpece. O relevo chão era irregular. Por vezes, tive a sensação de correr sobre pedras. Em outros momentos senti meus pés afundarem, como se houvesse areia sob eles. Contudo, o que mais me intrigou foi perceber que ouvia apenas meus passos e minha respiração. Ainda era perseguido, podia sentir, mas não conseguia ouvir qualquer som vindo de trás.

Sentia a boca seca e o coração arredio pisoteando-me o peito, quando o beco bifurcou-se novamente. Segui pelo caminho da esquerda que, para minha surpresa, estava iluminado. Assim que meus olhos se acostumaram à luz, olhei para trás e a pude vê-la mais nitidamente. O manto acinzentado cobria todo o seu corpo, de modo que eu só conseguia ver os contornos que se desenhavam no tecido entre uma passada e outra. Corria silenciosa, sedenta por mim. Pensei ser a morte. Corri ainda mais.

Tentei entregar minha atenção ao caminho, tentando ver adiante. Notei então a presença de inúmeros quadros, presos às paredes. Quis observar as imagens contidas nas telas, mas corria rápido demais para ter uma boa visão. Reduzi minha velocidade vi que em todos os quadros havia uma mulher, mas não consegui ver seu rosto. Corri ainda mais devagar para vê-la. Ela me parecia familiar. Em todas as telas, seu misterioso olhar estava apontado para mim. Olhei novamente para frente e me deparei com o fim do corredor. Nele havia um derradeiro quadro.

Parei bruscamente diante desta tela final. Nela, a mesma mulher retratada, porém, comigo ao seu lado. Eu a abraçava, nós dois sorríamos. Observei-a por pouco mais de dois segundos. Então a lembrança criatura que me perseguia me despertou, mas já era tarde. Não tive tempo de voltar o olhar para vê-la se aproximar. Apenas senti o impacto de seu abraço maldito, que me levou ao chão violentamente.

Despertei assustado, com a respiração ofegante e o rosto suado. Havia adormecido no sofá. O pesadelo ainda estava vivo em minha mente. O beco, a criatura em seu manto, os quadros nas paredes, o abraço que me levou ao chão. “Felizmente foi apenas um pesadelo”, pensei. Mas aí notei que havia algo em minha mão. Era uma foto rasgada ao meio. A imagem era a mesma do derradeiro quadro. O sorriso, a mulher. Fui arrebatado para a realidade e senti um aperto no peito. Percebi que aquilo não era um pesadelo. Era real. A criatura que me perseguia de fato conseguira me pegar, eu podia sentir suas garras apertando-me por dentro. Seu nome? Solidão.




quinta-feira, 25 de julho de 2013

Inveja

- Mas é um primor essa esposa do Chico. Disso você não pode discordar! – Comentou sem desprender o olhar da morena que atravessava a rua.
- Realmente, é uma bela mulher. Mas essa é uma opinião universal, não vale. Não há um homem nesse bar cujo olhar não esteja com ela nesse momento.

- Poderia utilizá-la para reforçar a minha tese. Mas, seria deselegante.

- Ah sim, sua tese. Desenvolva-a melhor. Quem sabe ela começa a fazer algum sentido.

- Não tivesses a inexperiência da juventude como “vantagem”, diria que tua teima é irritante. No entanto, sou compreensivo e entendo que não me fiz bastante claro. Posso continuar então?

- Por favor!

- Pois bem, meu jovem, sendo direto, dizia eu que a inveja é a força que rege as relações humanas, para não dizer a vida. Qualquer outra coisa que lhe disserem será bobagem.

- Como assim, meu caro? Dê-me uma prova do que dizes. – Indagou o homem com um sorriso sarcástico.

- Belo relógio esse que tens no pulso. É novo? – Apontou.

- Sim. Mandei trazerem da Suíça. É automático. Banhado a ouro. – O rapaz agora o exibia com olhar satisfeito.

- Deve ter custado caro.

- Sim. Confesso que economizei algum tempo para comprá-lo.

- Presumo que te orgulhas de possuí-lo.

- Diria que sim.

- Mas, o que o faz tão especial, a ponto de teres te sacrificado para obtê-lo?

- Como assim? É um relógio suíço banhado a ouro. Acaso achas que não tem valor?

- Não, até o mais idiota dos homens reconheceria o valor dele. Refiro-me ao que há nele que te faz ser orgulhoso de sua posse.

- A beleza da peça, a qualidade do material utilizado...essas coisas.

- Besteira! Você sabe que não é isso.

- Não entendo. Onde queres chegar?

- Apenas estou tentando te mostrar a verdade.

- E qual é a verdade?

- Esse relógio lhe é tão valioso não por seu material ou pela beleza. O que o faz especial é o fato de que, por ser importado, não é um relógio comum, desses que se vê por aí, no pulso de qualquer um. Ademais, é feito de ouro, o que, de fato o torna belo, mas, além disso, atrai os olhares alheios, faz com que as pessoas o cobicem, invejem você por possuí-lo.

- Não é nada disso.

- Ok. Discordas então?

- Plenamente.

- Certo. Mudemos de assunto. Você é médico, não?

- Você sabe que sim.

- Há quanto tempo?

- Uns cinco anos.

- És um homem jovem, imagino que ingressou na faculdade bem cedo.

- Sim, era o único adolescente da turma. Meus colegas de classe implicavam muito comigo por isso.

- Achas que a implicância se dava por tua pouca idade?

- Sim, porque mais seria?

- E se eu te dissesse que era inveja? Que era um modo dos colegas manifestarem a indignação que sentiam por teres alcançado teu objetivo tão cedo?

- Diria que estás enganado.

- Digo mais: pelo modo como você falou, devias te orgulhar em ser o mais jovem da turma. E tal regozijo era um reflexo do seu ego, que se sentia lisonjeado por saber que despertava a inveja alheia.

- Hahaha. Isso é loucura, sabia?

- Será? Pense bem.

- Ok. Se você me der um exemplo realmente convincente, posso aceitar que tens certa razão.

- Tudo bem. Olha lá, a esposa do Chico vem voltando.
A conversa cessou. O silêncio se fez, e o bar inteiro devotou total atenção à moça. Passados alguns segundos, retomaram o assunto.

- Eis o exemplo convincente que querias.

- Qual?

- Acabou de passar. Não viste?

- A esposa do Chico?

- Sim. Ela mesma.

- Tá, me explica essa.

- Você, eu, e todo o resto do bar paramos para vê-la passar. Certo?

- Claro, como não parar?

- Pois bem. A menos que sejas ingênuo, haverás de concordar que todos os olhares a desejaram. Mentes fantasiaram coisas que levariam a todos nós para o inferno sem qualquer julgamento.

- Sim, sim. Sou culpado também, eu assumo. – Sorriu.

- Pois bem. Ela é uma bela mulher casada. Nós a desejamos. E, ainda que não queiras reconhecer, isso nos faz sentir inveja do Chico, por ter a sorte de dormir com ela todas as noites.

- Até pode ser. Mas isso não me convence.

- Mas eu ainda não terminei. Faltou dizer que o Chico sabe disso.

- Que todo mundo cobiça a mulher dele? Como?

- Meu caro, hás de convir que o Chico é um homem feio, ao passo que ela é perfeita. A probabilidade de um homem como ele ter uma esposa daquelas é muito pequena. No entanto, ele conseguiu, casou-se com uma bela mulher. Ele sabe que todos a desejam. Sabe que é invejado por tê-la desposado. Mas não se incomoda com isso. Na verdade, diria que ele se orgulha.

- Mas o Chico a ama.

- Amor...isso não existe. Foi apenas um nome que inventaram para designar o que quero dizer. Talvez ele até goste dela. Mas, acima de tudo, há a certeza de ser invejado. Aquele sentimento de ter algo valioso, que acaricia o ego. Você o conhece. Resguardada as devidas proporções, é o mesmo que você sente em relação ao seu relógio suíço.

- Estás realmente convencido que isso tudo é verdade, não é?

- Nestes anos de vida vi muitas coisas. Não foi atoa que cheguei a tal conclusão. A inveja é uma força onipresente. Ela é democrática, está no pobre e no rico, no culto e no ignorante. Claro, os abastados e os sábios sempre são mais invejados, mas isto não significa que não sintam inveja de outros que estão em seu patamar ou acima dele. É algo que nasce conosco. Que nos faz, na infância, querer o melhor brinquedo. E, se não o temos, quebramos o do colega que o tenha. Na vida adolescência, nos faz desejar o beijo da menina mais bela, ser bom nos esportes. Na vida adulta, nos faz querer uma vida confortável. Meu caro chame do que quiser: vaidade, conforto, orgulho, amor. Seja o que for a inveja estará por trás, regendo tudo. É algo que faz parte de nós, queira ou não. Mesmo o mais humano dos homens a tem, embora a negue.

- Desculpe, mas acho isso tudo uma grande loucura.

- Prove-me o contrário.

- Como disseste no início, não vi muito da vida para poder refutar o que dizes. Nem vi tão pouco para tomar como verdade absoluta o que ouvi. Dar-te-ei o benefício da dúvida.

- Tudo bem. Quem sabe não estás certo? Talvez minha tese seja apenas a senilidade da velhice chegando. Quando estiveres mais velho, se eu ainda tiver vivo, me diga o que achas. É possível que chegues à conclusão de que eu estou errado. Se não, aceite que eu estive certo, ou então que também te tornaste senil.

- Tenho de reconhecer que és um homem esclarecido. Invejo isso.

- Já é um começo. - Sorriu.



terça-feira, 2 de julho de 2013

O Autor

Abriu a porta sem bater e foi logo apontando o dedo no rosto do homem de barba grisalha que estava sentado á mesa - "A culpa é tua, velho senil. Como pode fazer isso comigo? Achas mesmo já era a minha hora? Fala sério!" - "Tenha calma, meu querido. Queira se sentar, por favor." - respondeu o homem com uma cordialidade que desarmaria até o mais obstinado dos homens. Ainda nervoso, ele sentou, ameaçando agora, não com palavras, com o olhar.

- Diga-me, em que posso ajudá-lo, meu caro? - Indagou o velho.

- Ajudar? Eu quero é que você corrija todas as besteiras que fez no decorrer desses anos. As coisas não seguiram conforme eu havia previsto, meu personagem passou por uma série de problemas inesperados e, para completar, saiu da história sem ter sequer um final digno. Eu sei que é você o autor dos roteiros por aqui, então trate de consertar tudo.


O senhor sorriu de um modo gostoso, como se estivesse diante de uma criança, dessas que surgem com perguntas e afirmações, cheias de razão, e cuja ingenuidade surpreende e encanta ao mesmo tempo.

- Do que você está rindo? Acaso falei alguma besteira? Estou perdendo a paciência, responda logo velho! Porque você me tirou da história?! - A irritação era visível.

- Você não é o primeiro a entrar aqui desse modo, sabia? Algo me diz que devo ter a certeza de que não será o último. Enfim, ossos do ofício. - Respondeu o velho em tom de desabafo, mas com um leve sorriso no rosto.

- Não tenho nada a ver com seus problemas. Se recebes muitas reclamações, é porque não tem feito as coisas direito. O meu caso é exemplo disso.

- Estás mesmo convencido de que eu sou culpado por todas as suas desventuras, não é?

- Quem mais seria, senão você? Você é o autor!

- Alguma vez você chegou a pensar que pode ser o culpado por tudo?

- Não tenho culpa alguma. Li o que você escreveu no roteiro, fiz tudo certo e, no fim, as coisas deram errado.

- Esse roteiro que você tanto fala, o qual eu escrevi. O que ele dizia para você fazer?

- Não o decorei, mas ele dizia basicamente: Viva, ame, lute, conquiste.

- Pouco específico, não acha?

- Seja como for, fiz tudo isso, a meu modo, mas fiz. E no fim não deu certo.

- Entendo. Responda-me, em algum momento alguém dirigiu teus atos? Alguém te disse o que fazer? Você teve que ensaiar as falas, cenas?

- Não, as cenas eram todas no improviso. Confesso que achava isso estranho, mas nem por isso parei de atuar. Fiz o melhor que pude quando estava no palco.

- Pois é. Então reconheces que, a todo o momento, estavas livre para fazes escolhas, dizer e fazer o que bem entendesse, certo?

- Sim, isso é verdade. - Respondeu pensativo, encarando o vazio. Decerto começava a perceber o que acontecera.

- E, ainda assim, achas que a culpa é minha. Permita-me esclarecer as coisas: minha função aqui é unicamente a de trazer os personagens ao palco; nada além. Eu apenas digo o momento em que cada um deve surgir para compor a história. O desenvolvimento do personagem, assim como o tempo que ele permanecerá sob os holofotes, depende unicamente dele mesmo. O roteiro é facultativo, pode-se segui-lo ou não. Perceba que, ao final, foram suas escolhas que escrevem o roteiro. Você foi o verdadeiro autor o tempo todo.

- Talvez você tenha razão. De fato, fiz algumas escolhas equivocadas. Mas, não foram todas. Não merecia deixar o palco daquela maneira. Não teria como eu voltar, pelo menos para reparar alguns erros?

- Infelizmente, não. Uma vez fora, não há volta. É assim que as coisas são.

O rapaz levantou-se cabisbaixo e seguiu desanimado até a porta. O velho o observou com o costumeiro aperto no coração, e o olhar de quem já presenciara aquela mesma cena inúmeras vezes. Contudo, antes de sair o rapaz voltou-se ao velho:

- Posso fazer só mais uma pergunta?

- Claro. O que você quiser.

- Qual o nome desse espetáculo, no qual estive atuando por todo esse tempo?

O velho suspirou e respondeu: "Vida".



sexta-feira, 31 de maio de 2013

Divórcio

- Alô?
- Ricardo, acabou!
- Como assim? Laura? Laura, o que tá acontecendo? Fala comigo!
- Não tem muito mais a ser dito. Eu simplesmente cansei. Essa não é a vida que você me prometeu. Há muito venho sofrendo em silêncio. É melhor acabar tudo agora, já insistimos por tempo demais.
- Não! Espera, não é assim que as coisas se resolvem. Qual é o problema? Onde eu errei? Você não pode ser radical assim.
- Radical? Já suportei coisas demais. Parece não haver espaço para mim na sua vida. Se eu sair agora, aposto que não sentirás falta alguma. É simples, eu quero o divórcio. Por favor, não tente piorar as coisas.

- Calma. Eu sei que tenho trabalhado muito, mas é pensando no seu conforto e no do nosso filho. Sim, pensa no nosso filho. Como achas que ele vai reagir? Achas que ele vai sair ileso disso tudo?
- Agora você resolveu pensar nele, é? Ele só importa quando convém. Ou você sai de casa, ou saio eu. Independente disso, ele fica comigo!
- Por favor, você está nervosa. Isso não é algo a ser resolvido pelo telefone. Espera eu chegar em casa. Prometo que vamos conversar e tudo vai se resolver da melhor forma possível.
- Não adiantará. Não vai mudar as coisas.
- Por favor! Pelo nosso filho!
- Você usando ele novamente. Tudo bem, conversamos aqui então. Não por você, mas pelo nosso filho. Essa é a tua última chance!
- Certo. Quando eu chegar aí, vamos conversar, e você vai ver que as coisas não são o que parecem. Não vivemos um casamento perfeito, mas eu ainda te amo. Você e o nosso filho são tudo para mim, acredite. Não abriria mão de vocês por nada.
- Tá. Tchau.
- Tchau. Eu te amo.

Ele deixa o telefone sobre cama e fica pensativo por um instante. Uma jovem sai do banheiro enrolada em uma toalha e secando os cabelos. Olha-o nos olhos e indaga:

- Quem era? Ouvi o telefone tocar. Aposto que era a sua mulher.
- Sim, era ela.
- Até quando vou ter que suportar isso?
- Meu amor, você precisa ter paciência. As coisas não são tão simples. Já te disse que meu casamento está em ruínas. Não existe amor, estamos juntos apenas pelas aparências.
- Se são apenas aparências, porque você não termina tudo de uma vez?
- Não posso. Tenho um filho, esqueceu? Precisas ser paciente. Eu tenho que preparar o terreno, minha mulher não vai aceitar tão facilmente. Você precisa ter calma. No momento certo eu pedirei o divórcio e poderemos ficar juntos. Você sabe que é o amor da minha vida. Só precisas esperar.
- Sei... e o que ela queria?
- Nada de importante. Apenas precisarei chegar em casa um pouco mais cedo. Ela quer falar algo sobre nosso filho. Mas, não fica assim. Ainda tenho uma hora. Vem, deita aqui comigo.

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Verdades

"E a verdade então será de barro, e poderosos serão os oleiros", bradou o bêbado. Pouco depois tomou o derradeiro gole de cachaça, que de tão longo não deixou o ar chegar aos pulmões. Afogou-se na fonte de prazer, o infeliz. No entanto, disseram que o encontro da cabeça com a calçada fora o responsável pelo falecer. Eu tinha nove anos, não sabia nem o que era a vida, que dirá a morte. Lembro que sol estava quente e que minha mãe me mandara comprar algo na mercearia. Sobretudo, lembro das palavras do bêbado. Profeta maldito, iluminado nas últimas palavras. Nos derradeiros segundos, tivera sua epifania. Acho que talvez as dissera para mim. Não para quem eu era, mas para quem sou nestes quarenta e poucos anos miseráveis.

Sobre o papel medíocre, marchetado em preto, meu nome jazia, responsabilizando-me pela falácia. De repente o café cotidiano ficou amargo enquanto as palavras do profeta morimbundo me vinham à mente. Serena pediu-me o jornal. Mastigou, silenciosa, as palavras, enquanto o pão com manteiga esperava sobre a mesa. Ao final da leitura já não tinha fome. Pensativa, ficou a olhar a fumaça que fugia da minha xícara. Esperei pelo golpe, como o gladiador que não deseja a luta. Ela nada disse. Engoliu a revolta, mesmo sabendo que ficaria empachada. Levantou da mesa, beijou-me o rosto e saiu. Ficamos eu e o pão, sem as esperadas reações. Como ele não quisesse conversa, parti.

Oito horas da manhã e o trânsito era o purgatório. Nem mesmo o Vivaldi aliviava. Não olhava os retrovisores, temendo encarar a mim mesmo. O som das buzinas batia ao vidro. Ou seria mais um pedinte? Não vi, não quis ver. Temia o olhar deles também. Quis ter asas para fugir. Meu possante carro avançava, era agora a maior das futilidades. Eu estava atrasado para um importante compromisso indesejável. Enfrentaria a corriola de cabeça erguida. Não sabia como, mas o faria. O sol quis se esconder, por um instante cri no milagre de uma chuva que me levasse de volta para casa. Era só uma nuvem, que sequer lacrimejou. Não haveria álibi para a fuga.

Ainda no estacionamento, olhares me eram disparados. Minha doença estava estampada em minha testa. Até ontem intocável eu era. Hoje o mundo parecia me julgar. Meu erro já era do conhecimento de todos. Mas não haveria fogueira para este herege. Não em praça pública. Por isso eles tentavam me queimar aos poucos, em seu não tão silencioso cochicho. Atravessei a porta de entrada e senti o ar caindo sobre meus ombros. Nem mesmo o sorriso diário da secretária eu ganhei. Limitou-se a apontar o caminho que eu já conhecia. A familiaridade que eu julgava ter naquele ambiente, definitivamente inexistia agora. Eu era corpo estranho, deveria ser eliminado. A demissão era o mínimo. Mas eu julgava ser essa uma hipótese tão boa, que sequer a considerava.

No elevador, a coragem quis nascer. Encarei a todos com o meu 'bom dia'. Quando só, enfrentei a mim no espelho, pela primeira vez no dia. A escalada não tinha fim. Uma pequena tela mostrava o número dos andares, contava os segundos de minha agonia. Mesmo parado, sentia meu corpo doer. Ao final, a paisagem não compensaria o esforço. Lá no alto, as portas se abririam no inferno, e nem minhas preces poderiam me livrar. Mas era preciso enfrentar o monstro que ousei despertar. A coragem menina eu já tinha. Só faltavam-me as armas. Palavras? Acaso poderia eu entregar minha salvação nas mãos de meus algozes?

Sentei à mesa e todos os olhares se voltaram a mim. Atiraram sobre a mesa a edição do jornal. Indagaram os motivos. Em poucos minutos, eu era  metralhado por afirmações to tipo:"Você é pago para moldar fatos!"; "A verdade é como aquelas mulheres que precisam de maquiagem para atrair olhares!"; "A diferença entre heróis e bandidos está em nossas mãos". Em cerca de cinco minutos, muito fora dito na tentativa de me convencer de meu pecado. Mas o golpe final veio das mãos do grão-inquisidor, o proprietário do jornal: "Meu caro, hoje o mundo está alicerçado em fatos manipulados. Se concordamos que algo aconteceu, não há necessidade de provas para tal. Compreendo sua boa intenção, mas deste ponto não há mais volta. Revelações poderiam comprometer a estrutura. No entanto, admiro sua coragem, o último a tentar algo parecido feneceu pregado a uma cruz. Belo exemplo".

Convencido de minha chaga, deixei a sala surpreso por dela sair vivo. A frase do embriagado ressoou novamente em minha mente. Uma vez mais ao elevador, enquanto lamentava a morte prematura da coragem outrora engendrada, veio a mim, então, a epifania de uma vida: se temos o poder da verdade, somos deuses. Por um instante, maravilhei-me com a idéia. Segundos depois, ela passou a me assombrar. Afinal, meu crime impresso tornara-me um traidor. Ciente de já não ser um deus, um rosto de repente surgiu na tela que outrora mostrava os números. Viera ele corroborar minha condição de mortal. Era ele, o Pilatos, a selar meu destino. "Não se preocupe, será apenas um acidente, todos estão sujeitos a algo assim". Antes que pudesse digerir as palavras, tudo se apagou. Meus pés deixaram o chão e tive a certeza de que o elevador despencava. Nos poucos segundos restantes, recordei aquele dia, na infância. Diferentemente do bêbado, eu não teria ninguém para ouvir minha profecia derradeira. Na verdade, sequer formulei alguma.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Mártir


Meu pai era militar, desses que acreditam ser o mundo um paletó de medalhas. Minha mãe era uma sonhadora: um desses espíritos livres que dão o azar de serem enclausurados em um corpo frágil, obrigados a se submeter à força alheia. Puxei a ela, dizia meu pai em momentos de raiva. Queria ele que eu fosse um burocrata, desses que guarda desejos em gavetas e faz da armação dos óculos sua barricada. A ideia de que um filho pudesse superar as conquistas do Coronel jamais fora cogitada. Mas, nasci para viver, e esse era meu defeito. Embora mamãe jamais manifestasse qualquer opinião, eu via no brilho do olhar dela a admiração que sentia por mim, a cada vez que eu desafiava meu velho pai.

Sabendo não ser capaz de conter meu ímpeto, após quatorze anos de labuta, o Coronel resolveu delegar sua função. “Vais para a escola militar, para aprender a ser homem”, ele me disse naquela manhã de domingo, enquanto eu flertava com as nuvens. Certo estava de que, se eu seguisse carreira, teria de obedecê-lo, pois seria meu superior. Meu sorriso irônico o matou, mas não o dissuadiu. Na manhã seguinte eu parti, com algumas roupas e muita coragem na mala. Mamãe chorava silenciosa à porta. Meu pai tinha no rosto aquele ar de vitória. Entregou-me pessoalmente ao comandante e deu recomendações expressas para que pusessem minhas ideias na masmorra.

O tratamento que recebi naquele quartel para estudantes foi crucial para mim. Embora já sentisse na pele a repressão paterna, percebi que ali as proporções eram muito maiores. Minha mania de observação me permitiu compreender a mecânica por trás de tudo o que ali era ensinado. O objetivo não era impedir-nos de voar, mas sim estabelecer uma direção a ser seguida por toda a vida. Sabendo disso, me protegi. Fiz-me de cego, cultivando em mim a tão combatida criticidade. Esta seria minha maior arma um dia, e eu sequer imaginava.

Seis meses depois, voltei para casa. O uniforme engomado e os cabelos curtos arrancaram um sorriso do Coronel, que logo foi sucedido de inúmeras perguntas. Entreguei-lhe uma carta e abracei minha mãe. Ao ler o escrito, meu pai silenciou. O comandante responsável por mim o aconselhava a deixar-me viver. A mudança de opinião se devia ao suicídio cometido pelo filho do mesmo, o qual possuía a mesma idade que eu, e não resistira à repressão paterna. Meu pai beijou-me a fronte e nunca mais me direcionou qualquer palavra de censura. Mas eu sabia que eu era a maior decepção de sua vida. Mas não me importava com isso. Ele cortara as asas de minha mãe, não faria o mesmo comigo.

Observei atento, a realidade ao meu redor. Descobri que minha família era composta por representantes dos três tipos de pessoas que compunham a sociedade da época: os poderosos dominantes, representados por meu pai; os submissos silenciosos, que tinham minha mãe como representante; e os subversivos pensadores, com os quais eu me identificava. A partir de então, minha mente se pôs a trabalhar e milhares de ideias se enraizaram em mim. Conforme elas amadureciam, eu sentia a necessidade de encontrar pessoas com crenças similares às minhas. A ânsia sobrepujou a cautela. Este foi meu erro.

Aos dezoito anos, descobri ser o destino um cavalo arredio. Quis eu lhe impor rédeas, e por muito pouco não fui ao chão. Longe de casa estava. Entre amigos, pensava. Após bebidas e “drogas” dei voz ao coração, narrei minhas insatisfações, crente que eles concordariam comigo. Enganei-me e, pela segunda vez, fui posto a ferros. Traidores. Maldita seja minha verborragia, pensei. Porém, logo depois me redimi comigo mesmo. E segui cultivando meus ideais no silêncio da cela. Felizmente, o curto tempo na escola militar me ensinara a ser paciente. Mas dessa vez precisei ser um pouco mais. Cinco foram os anos que passei no cárcere.

Quando enfim liberto, quis gritar ao mundo. Mas já sabia o deveria fazer: apeguei-me ao papel e à tinta e engendrei aquilo que seria ideário de uma geração. Minhas palavras atingiram bases sólidas e eu as vi ruir aos poucos. Mas a segurança do anonimato só agradaria a meu pai. Escondido atrás da mesa com minha caneta, eu personificava, em parte, o sonho medíocre do Coronel. Vendo-me sofrer, mamãe afagou-me os cabelos e disse “vai”. Lancei-me ao campo e dei um rosto ao movimento. Dei a cara e esperei o tapa.


Ganhamos ainda mais força e, de repente, éramos milhares, rumo ao triunfo. Os intocáveis temiam-nos. Desesperados, atingiram a mim, crendo ser eu o coração. Meu corpo se despedaçou, e eles comemoraram. Contudo, este foi seu erro: tornei-me um mártir. Minha voz permaneceu viva, e foi questão de tempo até o recomeço. Meu nome virou símbolo, e jamais esquecido. Com meu sangue, escrevi meu nome nas linhas da história.

Anos depois reencontrei minha mãe por entre as nuvens, satisfeita como jamais a vira. Sua liberdade viera enfim. Ela contou-me das transformações ocorridas, e de como eu me tornara o orgulho de uma geração. Dei-lhe a mão e corremos rumo ao sol poente. Lembrei-me então do Coronel. Jamais o encontrei perdido pelo céu. Às vezes me pergunto se foi por ele não ter asas, ou se ele as possuía, mas o peso das medalhas não o deixava voar.