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sexta-feira, 31 de maio de 2013

Divórcio

- Alô?
- Ricardo, acabou!
- Como assim? Laura? Laura, o que tá acontecendo? Fala comigo!
- Não tem muito mais a ser dito. Eu simplesmente cansei. Essa não é a vida que você me prometeu. Há muito venho sofrendo em silêncio. É melhor acabar tudo agora, já insistimos por tempo demais.
- Não! Espera, não é assim que as coisas se resolvem. Qual é o problema? Onde eu errei? Você não pode ser radical assim.
- Radical? Já suportei coisas demais. Parece não haver espaço para mim na sua vida. Se eu sair agora, aposto que não sentirás falta alguma. É simples, eu quero o divórcio. Por favor, não tente piorar as coisas.

- Calma. Eu sei que tenho trabalhado muito, mas é pensando no seu conforto e no do nosso filho. Sim, pensa no nosso filho. Como achas que ele vai reagir? Achas que ele vai sair ileso disso tudo?
- Agora você resolveu pensar nele, é? Ele só importa quando convém. Ou você sai de casa, ou saio eu. Independente disso, ele fica comigo!
- Por favor, você está nervosa. Isso não é algo a ser resolvido pelo telefone. Espera eu chegar em casa. Prometo que vamos conversar e tudo vai se resolver da melhor forma possível.
- Não adiantará. Não vai mudar as coisas.
- Por favor! Pelo nosso filho!
- Você usando ele novamente. Tudo bem, conversamos aqui então. Não por você, mas pelo nosso filho. Essa é a tua última chance!
- Certo. Quando eu chegar aí, vamos conversar, e você vai ver que as coisas não são o que parecem. Não vivemos um casamento perfeito, mas eu ainda te amo. Você e o nosso filho são tudo para mim, acredite. Não abriria mão de vocês por nada.
- Tá. Tchau.
- Tchau. Eu te amo.

Ele deixa o telefone sobre cama e fica pensativo por um instante. Uma jovem sai do banheiro enrolada em uma toalha e secando os cabelos. Olha-o nos olhos e indaga:

- Quem era? Ouvi o telefone tocar. Aposto que era a sua mulher.
- Sim, era ela.
- Até quando vou ter que suportar isso?
- Meu amor, você precisa ter paciência. As coisas não são tão simples. Já te disse que meu casamento está em ruínas. Não existe amor, estamos juntos apenas pelas aparências.
- Se são apenas aparências, porque você não termina tudo de uma vez?
- Não posso. Tenho um filho, esqueceu? Precisas ser paciente. Eu tenho que preparar o terreno, minha mulher não vai aceitar tão facilmente. Você precisa ter calma. No momento certo eu pedirei o divórcio e poderemos ficar juntos. Você sabe que é o amor da minha vida. Só precisas esperar.
- Sei... e o que ela queria?
- Nada de importante. Apenas precisarei chegar em casa um pouco mais cedo. Ela quer falar algo sobre nosso filho. Mas, não fica assim. Ainda tenho uma hora. Vem, deita aqui comigo.

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Verdades

"E a verdade então será de barro, e poderosos serão os oleiros", bradou o bêbado. Pouco depois tomou o derradeiro gole de cachaça, que de tão longo não deixou o ar chegar aos pulmões. Afogou-se na fonte de prazer, o infeliz. No entanto, disseram que o encontro da cabeça com a calçada fora o responsável pelo falecer. Eu tinha nove anos, não sabia nem o que era a vida, que dirá a morte. Lembro que sol estava quente e que minha mãe me mandara comprar algo na mercearia. Sobretudo, lembro das palavras do bêbado. Profeta maldito, iluminado nas últimas palavras. Nos derradeiros segundos, tivera sua epifania. Acho que talvez as dissera para mim. Não para quem eu era, mas para quem sou nestes quarenta e poucos anos miseráveis.

Sobre o papel medíocre, marchetado em preto, meu nome jazia, responsabilizando-me pela falácia. De repente o café cotidiano ficou amargo enquanto as palavras do profeta morimbundo me vinham à mente. Serena pediu-me o jornal. Mastigou, silenciosa, as palavras, enquanto o pão com manteiga esperava sobre a mesa. Ao final da leitura já não tinha fome. Pensativa, ficou a olhar a fumaça que fugia da minha xícara. Esperei pelo golpe, como o gladiador que não deseja a luta. Ela nada disse. Engoliu a revolta, mesmo sabendo que ficaria empachada. Levantou da mesa, beijou-me o rosto e saiu. Ficamos eu e o pão, sem as esperadas reações. Como ele não quisesse conversa, parti.

Oito horas da manhã e o trânsito era o purgatório. Nem mesmo o Vivaldi aliviava. Não olhava os retrovisores, temendo encarar a mim mesmo. O som das buzinas batia ao vidro. Ou seria mais um pedinte? Não vi, não quis ver. Temia o olhar deles também. Quis ter asas para fugir. Meu possante carro avançava, era agora a maior das futilidades. Eu estava atrasado para um importante compromisso indesejável. Enfrentaria a corriola de cabeça erguida. Não sabia como, mas o faria. O sol quis se esconder, por um instante cri no milagre de uma chuva que me levasse de volta para casa. Era só uma nuvem, que sequer lacrimejou. Não haveria álibi para a fuga.

Ainda no estacionamento, olhares me eram disparados. Minha doença estava estampada em minha testa. Até ontem intocável eu era. Hoje o mundo parecia me julgar. Meu erro já era do conhecimento de todos. Mas não haveria fogueira para este herege. Não em praça pública. Por isso eles tentavam me queimar aos poucos, em seu não tão silencioso cochicho. Atravessei a porta de entrada e senti o ar caindo sobre meus ombros. Nem mesmo o sorriso diário da secretária eu ganhei. Limitou-se a apontar o caminho que eu já conhecia. A familiaridade que eu julgava ter naquele ambiente, definitivamente inexistia agora. Eu era corpo estranho, deveria ser eliminado. A demissão era o mínimo. Mas eu julgava ser essa uma hipótese tão boa, que sequer a considerava.

No elevador, a coragem quis nascer. Encarei a todos com o meu 'bom dia'. Quando só, enfrentei a mim no espelho, pela primeira vez no dia. A escalada não tinha fim. Uma pequena tela mostrava o número dos andares, contava os segundos de minha agonia. Mesmo parado, sentia meu corpo doer. Ao final, a paisagem não compensaria o esforço. Lá no alto, as portas se abririam no inferno, e nem minhas preces poderiam me livrar. Mas era preciso enfrentar o monstro que ousei despertar. A coragem menina eu já tinha. Só faltavam-me as armas. Palavras? Acaso poderia eu entregar minha salvação nas mãos de meus algozes?

Sentei à mesa e todos os olhares se voltaram a mim. Atiraram sobre a mesa a edição do jornal. Indagaram os motivos. Em poucos minutos, eu era  metralhado por afirmações to tipo:"Você é pago para moldar fatos!"; "A verdade é como aquelas mulheres que precisam de maquiagem para atrair olhares!"; "A diferença entre heróis e bandidos está em nossas mãos". Em cerca de cinco minutos, muito fora dito na tentativa de me convencer de meu pecado. Mas o golpe final veio das mãos do grão-inquisidor, o proprietário do jornal: "Meu caro, hoje o mundo está alicerçado em fatos manipulados. Se concordamos que algo aconteceu, não há necessidade de provas para tal. Compreendo sua boa intenção, mas deste ponto não há mais volta. Revelações poderiam comprometer a estrutura. No entanto, admiro sua coragem, o último a tentar algo parecido feneceu pregado a uma cruz. Belo exemplo".

Convencido de minha chaga, deixei a sala surpreso por dela sair vivo. A frase do embriagado ressoou novamente em minha mente. Uma vez mais ao elevador, enquanto lamentava a morte prematura da coragem outrora engendrada, veio a mim, então, a epifania de uma vida: se temos o poder da verdade, somos deuses. Por um instante, maravilhei-me com a idéia. Segundos depois, ela passou a me assombrar. Afinal, meu crime impresso tornara-me um traidor. Ciente de já não ser um deus, um rosto de repente surgiu na tela que outrora mostrava os números. Viera ele corroborar minha condição de mortal. Era ele, o Pilatos, a selar meu destino. "Não se preocupe, será apenas um acidente, todos estão sujeitos a algo assim". Antes que pudesse digerir as palavras, tudo se apagou. Meus pés deixaram o chão e tive a certeza de que o elevador despencava. Nos poucos segundos restantes, recordei aquele dia, na infância. Diferentemente do bêbado, eu não teria ninguém para ouvir minha profecia derradeira. Na verdade, sequer formulei alguma.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Mártir


Meu pai era militar, desses que acreditam ser o mundo um paletó de medalhas. Minha mãe era uma sonhadora: um desses espíritos livres que dão o azar de serem enclausurados em um corpo frágil, obrigados a se submeter à força alheia. Puxei a ela, dizia meu pai em momentos de raiva. Queria ele que eu fosse um burocrata, desses que guarda desejos em gavetas e faz da armação dos óculos sua barricada. A ideia de que um filho pudesse superar as conquistas do Coronel jamais fora cogitada. Mas, nasci para viver, e esse era meu defeito. Embora mamãe jamais manifestasse qualquer opinião, eu via no brilho do olhar dela a admiração que sentia por mim, a cada vez que eu desafiava meu velho pai.

Sabendo não ser capaz de conter meu ímpeto, após quatorze anos de labuta, o Coronel resolveu delegar sua função. “Vais para a escola militar, para aprender a ser homem”, ele me disse naquela manhã de domingo, enquanto eu flertava com as nuvens. Certo estava de que, se eu seguisse carreira, teria de obedecê-lo, pois seria meu superior. Meu sorriso irônico o matou, mas não o dissuadiu. Na manhã seguinte eu parti, com algumas roupas e muita coragem na mala. Mamãe chorava silenciosa à porta. Meu pai tinha no rosto aquele ar de vitória. Entregou-me pessoalmente ao comandante e deu recomendações expressas para que pusessem minhas ideias na masmorra.

O tratamento que recebi naquele quartel para estudantes foi crucial para mim. Embora já sentisse na pele a repressão paterna, percebi que ali as proporções eram muito maiores. Minha mania de observação me permitiu compreender a mecânica por trás de tudo o que ali era ensinado. O objetivo não era impedir-nos de voar, mas sim estabelecer uma direção a ser seguida por toda a vida. Sabendo disso, me protegi. Fiz-me de cego, cultivando em mim a tão combatida criticidade. Esta seria minha maior arma um dia, e eu sequer imaginava.

Seis meses depois, voltei para casa. O uniforme engomado e os cabelos curtos arrancaram um sorriso do Coronel, que logo foi sucedido de inúmeras perguntas. Entreguei-lhe uma carta e abracei minha mãe. Ao ler o escrito, meu pai silenciou. O comandante responsável por mim o aconselhava a deixar-me viver. A mudança de opinião se devia ao suicídio cometido pelo filho do mesmo, o qual possuía a mesma idade que eu, e não resistira à repressão paterna. Meu pai beijou-me a fronte e nunca mais me direcionou qualquer palavra de censura. Mas eu sabia que eu era a maior decepção de sua vida. Mas não me importava com isso. Ele cortara as asas de minha mãe, não faria o mesmo comigo.

Observei atento, a realidade ao meu redor. Descobri que minha família era composta por representantes dos três tipos de pessoas que compunham a sociedade da época: os poderosos dominantes, representados por meu pai; os submissos silenciosos, que tinham minha mãe como representante; e os subversivos pensadores, com os quais eu me identificava. A partir de então, minha mente se pôs a trabalhar e milhares de ideias se enraizaram em mim. Conforme elas amadureciam, eu sentia a necessidade de encontrar pessoas com crenças similares às minhas. A ânsia sobrepujou a cautela. Este foi meu erro.

Aos dezoito anos, descobri ser o destino um cavalo arredio. Quis eu lhe impor rédeas, e por muito pouco não fui ao chão. Longe de casa estava. Entre amigos, pensava. Após bebidas e “drogas” dei voz ao coração, narrei minhas insatisfações, crente que eles concordariam comigo. Enganei-me e, pela segunda vez, fui posto a ferros. Traidores. Maldita seja minha verborragia, pensei. Porém, logo depois me redimi comigo mesmo. E segui cultivando meus ideais no silêncio da cela. Felizmente, o curto tempo na escola militar me ensinara a ser paciente. Mas dessa vez precisei ser um pouco mais. Cinco foram os anos que passei no cárcere.

Quando enfim liberto, quis gritar ao mundo. Mas já sabia o deveria fazer: apeguei-me ao papel e à tinta e engendrei aquilo que seria ideário de uma geração. Minhas palavras atingiram bases sólidas e eu as vi ruir aos poucos. Mas a segurança do anonimato só agradaria a meu pai. Escondido atrás da mesa com minha caneta, eu personificava, em parte, o sonho medíocre do Coronel. Vendo-me sofrer, mamãe afagou-me os cabelos e disse “vai”. Lancei-me ao campo e dei um rosto ao movimento. Dei a cara e esperei o tapa.


Ganhamos ainda mais força e, de repente, éramos milhares, rumo ao triunfo. Os intocáveis temiam-nos. Desesperados, atingiram a mim, crendo ser eu o coração. Meu corpo se despedaçou, e eles comemoraram. Contudo, este foi seu erro: tornei-me um mártir. Minha voz permaneceu viva, e foi questão de tempo até o recomeço. Meu nome virou símbolo, e jamais esquecido. Com meu sangue, escrevi meu nome nas linhas da história.

Anos depois reencontrei minha mãe por entre as nuvens, satisfeita como jamais a vira. Sua liberdade viera enfim. Ela contou-me das transformações ocorridas, e de como eu me tornara o orgulho de uma geração. Dei-lhe a mão e corremos rumo ao sol poente. Lembrei-me então do Coronel. Jamais o encontrei perdido pelo céu. Às vezes me pergunto se foi por ele não ter asas, ou se ele as possuía, mas o peso das medalhas não o deixava voar.


quinta-feira, 2 de maio de 2013

O viúvo


Foi em uma manhã de quarta feira, ao despertar, que o Jair notou que algo não estava certo. Levantara antes de Dalva, pela primeira vez em dez anos de casamento. Estranhou, afinal, ela sempre aguardava ao lado da cama até que ele acordasse. Com um jeito todo próprio, lhe desejava seu “bom dia”, sempre com frases doces, do tipo: “Bora! Levanta e vai trabalhar!”. Contudo, agora quem estava ao lado da cama era o Jair, olhando-a com certo espanto. Percebendo-a quieta demais, aproximou-se. Dalva parecia não respirar. Ao encostar o ouvido sobre o colo gélido, Jair arrepiou-se com o silêncio.

O que se seguiu foram horas de telefonemas e todos aqueles procedimentos que sucedem o óbito. O Jair foi o responsável por tudo. Desde a escolha do caixão, até à feitura do café, que foi servido no velório. Esta última tarefa em nada lhe era estranha, já que Dalva o obrigava a fazer café todos os dias. Todos os que provaram o café elogiaram a habilidade do viúvo. Acerca deste, indagava-se também sobre como seria o futuro sem a esposa. Um casamento longo como aquele sendo interrompido por uma fatalidade, certamente a vida não seria mais a mesma. Jair bem sabia.

O funeral foi na quinta-feira, pela manhã. Todos estavam admirados com a força mostrada por Jair. O semblante sério, inabalável, escondia a dor que por dentro o consumia. Pelo menos esse era o comentário que se disseminava entre os presentes. Alguns ofereciam seu ombro amigo, caso o viúvo desejasse desabafar. Cordialmente, o Jair agradecia, e dizia estar bem, apesar de tudo. Arrisco dizer que a comiseração em relação a ele, era bem maior que o pesar pela defunta. Não fossem as lágrimas derramadas pelos parentes, poder-se-ia dizer que a morta era mera coadjuvante.

Finda a cerimônia, as pessoas foram saindo, até que restasse apenas o Jair. Quando se viu só, ele enfim desabafou. Cuspiu no túmulo e se pôs a amaldiçoar a nova hóspede do cemitério. Alguém que por ali passasse, teria escutado coisas como:

- “Já vai tarde! Agora sim eu volto a viver. Maldito foi o dia em que eu botei aquela aliança no teu dedo e disse “sim” para o padre. Mas agora eu estou livre. Acabou o tormento. Lembra-se daquelas panelas que me forçavas a arear? Vou usar todas como urinol! E tua coleção de bibelôs de porcelana? Vou me divertir quebrando de um a um! Mas não agora. Agora eu vou aproveitar um pouco. Fica aí, que eu vou curtir. E fica tranquila que todos os anos, no Dia de Finados, eu venho aqui para cuspir na tua sepultura de novo!”.

E o Jair saiu pelas ruas, arrotando liberdade. Parou no primeiro bar que avistou e pediu uma dose da bebida mais forte. Após essa primeira, outras tantas vieram. E até o anoitecer o Jair já havia feito vários amigos de copo. As “moças” o chamavam de Jairzinho, e a vida era um carnaval. E entre bebidas, sexo e farra o viúvo desapareceu durante todo o fim de semana. A dieta alcoólica provocou um estado de embriaguez constante, de modo que a sobriedade somente retornou na manhã de quarta-feira.


A julgar pela ressaca, Jair jurava haver despertado em plena quarta-feira de cinzas. Poderia até não o ser para as demais pessoas, mas, para ele, sim. Embora deitado, sentia a cabeça girar. Estava em um quarto desconhecido, deitado em uma cama com pelo menos cinco outras pessoas. Transtornado das ideias, só conseguiu se situar quando alguém perguntou que dia era aquele, e ele se ouviu responder: “quarta-feira”. Imediatamente, lembrou-se que completava uma semana da morte de Dalva. Se não estivesse enganado, a missa de sétimo dia seria naquela manhã.

Em um sobressalto, pôs-se de pé, incomodando os demais, que ainda dormiam. Percebendo-se apenas com a roupa de baixo, tratou de procurar suas roupas dentre as tantas jogadas ao chão. Juntou algumas peças conhecidas, outras nem tanto, e vestiu-se. Saiu à rua apressado, passando a mão pelos cabelos, pondo a camisa para dentro das calças. Sequer sabia onde estava. Mas, era preciso chegar à missa a tempo. Apanhou o primeiro ônibus que passou e seguiu.

Após uma hora rodando pela cidade, conseguiu chegar à igreja. Quando entrou, o Padre já estava nos ritos finais. Após a bênção, este pediu que algum querido da homenageada viesse ao altar para proferir algumas palavras. Imediatamente, todos os olhares se voltaram para o Jair, que, sentado em um banco ao fundo, lutava contra a dor de cabeça e a náusea. Percebendo o silêncio, o viúvo entendeu a mensagem. Pôs a expressão grave no rosto e se encaminhou ao altar, tentando não cambalear.

Já diante do microfone, olhou para todos os presentes e tentou pensar em algo para dizer. Embora desejasse amaldiçoar uma vez mais a Dalva e expor para todos a tirana que era fora naqueles dez anos de casamento, porém sabia que seria julgado. Por isso, procurava palavras melhores. Mas raciocinar era difícil. A farra fora intensa, a ressaca o era ainda mais. Não suportando o peso da cabeça, apoiou-a nas mãos e ficou imóvel por alguns minutos. Arrisco dizer que nesse instante Jair tirou um breve cochilo.

As pessoas presentes, no entanto, interpretaram a situação de modo diverso. Comentavam a infelicidade do pobre viúvo. Cochichavam entre si coisas como:

- “Pobre Jair, olha como ele tá acabado. Eu sabia que ele estava se fazendo de forte. Aposto que após o enterro ele desabou.”.

- “Ele amava tanto a Dalva, não vai suportar viver sem ela. Olha o estado dele, e isso porque não faz nem uma semana que a ela faleceu.”.

E o Jair, que a estas alturas já havia sido gentilmente retirado do altar pelos coroinhas, pensava apenas em chegar a casa para se recuperar, cumprir as promessas que fizera a Dalva no cemitério para depois cair na gandaia novamente.