Páginas

sexta-feira, 23 de março de 2012

Pecados

     A relação de Juan e Fernanda era daquelas cujas raízes formaram-se na adolescência. Vizinhos, viram seu laço de amizade se fortalecer aos poucos, até o dia em que descobriram a presença do amor entre eles. Como a união fazia gosto a todos, o namoro deu o início formal à história que há muito começaram. Fernanda era moça bela. Dir-se-ia encantadora como as ninfas de Apolo. Cobiçada por muitos, mas possuída somente por Juan. Este era admirado por sua sagacidade. As moças atribuíam-lhe um charme irresistível. Embora jovem, demonstrava habilidade precoce nos negócios da família. Ninguém negava seu futuro promissor.
     A vida adulta principiava a mostrar suas cores quando Juan e Fernanda decidiram se casar. Ele detinha um cargo de chefia na empresa do pai e conquistara grande parte de seus objetivos. O casamento era, para ele, o que faltava para completar sua vida. Ela pensava de modo distinto. Ainda cursava a faculdade e tinha grandes planos para a carreira profissional, um casamento a atrapalharia, de certa forma. Contudo, o amava e não queria magoá-lo. Assim, quando Juan, diante de todos os familiares e amigos, pediu-a em casamento. Ela aceitou, embora vacilante, com aquela certeza incerta.
     A idéia do casamento agradou a todos. Exceto por Luiz, primo de Fernanda. Ambos tinham a mesma idade. Cresceram juntos. Fernanda o amava como a um irmão. No entanto, ele a via de modo distinto. Desejava-lhe desde o dia em que, quando ainda eram crianças, por inocência pueril, ela prometera-lhe que um dia casar-se-iam. Desde então tudo mudou. Para ele, a destino havia sido traçado e nada poderia mudá-lo. Permaneceu com esta certeza até ver Juan pedir sua amada em casamento. Pior foi ouvi-la aceitar segundos depois. Luiz não se conteve: golpeou a mesa com força e saiu. A reação de Luiz surpreendeu os familiares, que desconheciam seus sentimentos por Fernanda. Contudo, já era esperada pela moça.
     Luiz era daqueles coadjuvantes com anseios a protagonista. Desde o princípio odiou Juan. Detinha manifesta inveja deste, tanto pelo sucesso profissional, mas, mais ainda, por ele ter Fernanda. Queria equiparar-se a Juan, mas via-se incapaz. Embora houvesse tentado por vezes obter o sucesso, acabou por desistir. Era daqueles que nem o maior dos incentivos é capaz de motivar. Rendia-se facilmente à preguiça, que lhe impelia ao ócio e à vadiagem. Eis o motivo pelo qual Luiz não executou nenhum dos planos que idealizara para evitar aquele casamento.
     Juan e Fernanda casaram-se em outubro. Era o casal mais feliz do mundo, nos primeiros anos. Porém, às vezes o amor não resiste ao tempo que, por vezes, modifica os indivíduos, não só no físico, mas também no pessoal. Após dez anos de casamento, Fernanda permanecera praticamente a mesma. Embora se notasse em sua aparência a maturidade, ainda havia nela muito da menina de outrora.  Juan, porém, já não era mais o mesmo. Rendera-se à gula, mal que combatia desde a infância, e engordara significativamente. Fernanda já não via nele o rapaz charmoso com quem casara.
     Não obstante, Juan permitiu que o espírito capitalista fincasse suas raízes em si. Suas prioridades se referiam apenas ao trabalho e às posses: não só as que alcançara, mas também as que almejava. Fernanda já não representava para ele o amor, mas sim a conveniência. A avareza que cultivava em si, o impelia a valorizar apenas aquilo que estava ao alcance monetário. Não havia naquele homem espaço para meras abstrações. Já não era dono do próprio tempo, o importante era lucrar, tudo o mais podia esperar. Inclusive Fernanda.
      Luiz, que sempre acompanhara a relação do casal ao longe, tinha ciência do abismo que os separava. Sentiu então que era o momento para, enfim, ter Fernanda para si. Para isso dispunha de tempo, afinal, a herança dos pais o perpetuara no ócio a que era acostumado. Enquanto Juan dedicava-se ao trabalho, ao lucro; Luiz demonstrava empenho semelhante em se aproximar de Fernanda. E não foi difícil para ele penetrar naquela fortaleza cujas estruturas ruíam solitárias. Luiz tinha como arma principal as palavras. Foi com elas que tomou de assalto o coração de Fernanda. Ele sabia que ela sempre tivera por fraqueza a vaidade. Esta, como sabemos, tende a ser como a jovem ingênua, que se rende facilmente a elogios, mesmo os mais dissimulados.
     Foi assim que Fernanda entregou a Luiz o que ele tanto queria. A idéia do adultério pesava-lhe a consciência, mas ela dizia para si que o culpado por tudo era Juan. Tanto disse que logrou convencer-se. Deixou que Luiz conhecesse seu ardor. Luxuriosa, libertou todos os desejos que reprimira durante anos, visando resguardar a imagem de boa esposa. Sentia-se amada, uma vez mais. No entanto, mera ilusão era esta. O desejo de Luiz era daqueles que são engendrados pelo ego que, uma vez satisfeito, desaparece sem deixar vestígios.
     Ao perceber que saciara a vontade, Luiz pensou em por um fim em tudo. Porém, não seria tão simples. Teve esta certeza quando Fernanda disse-lhe que ele seria o responsável por seu divórcio. Luiz compreendeu que a situação seguia por rumos inesperados. Era preciso deter Fernanda enquanto ainda havia tempo. Marcaram um encontro no lugar de sempre. Não houve beijos nem abraços. Apenas palavras. Luiz foi o mais canalha dos homens. Era preciso, sua intenção era destruir qualquer sentimento ligado a si em Fernanda. E conseguiu.
     Fernanda voltou para casa e aguardou pacientemente até a chegada de Juan. Jantaram juntos, como há muito não faziam. Em seguida ela o arrastou para o quarto e o amou. Com paixão, com violência. Como se pedisse perdão. Como se os últimos anos inexistissem. Juan não entendeu nada a princípio. Depois, deixou de tentar entender. Por uma noite esqueceu tudo e sentiu que Fernanda era, de fato, a mulher de sua vida. Traçou planos de viagens, renovarem os votos de casamento. Por fim, adormeceu.
     Na manhã seguinte, Juan despertou com o alvoroço em sua casa. Vozes vinham de fora, seguidas de batidas fortes à porta. Foi até a porta: era a polícia. Procuravam por Fernanda. A acusação era Assassinato. A vítima, Luiz. Os motivos eram desconhecidos, mas, a julgar pelo corpo retalhado, ela o fizera motivada por uma ira imensurável. Juan correu até o quarto. Então a encontrou com uma faca cravada ao peito. Em meio ao sangue havia um bilhete. Juan apanhou-o lacrimejante. Havia apenas uma frase escrita: “Rendi-me ao pior pecado.”    



segunda-feira, 12 de março de 2012

Lâminas e lágrimas

Lâminas e lágrimas

Laceram-nos a pele, impiedosas,
Trazendo a dor que já conhecem
Aos corações que em vão padecem
 Por recordações imperiosas.

Atravessam tão sutis, silenciosas,
Nossas infelizes faces indefesas,
Expondo nossas solidões coesas
Como fossem feras insidiosas.

Seus talhos por vezes profundos
Não se mostram de todo ao olhar.
Com seu minúsculo traço a enganar
Quem desconhece nossos mundos.
Deixam-nos sempre suas máculas,
Que cicatrizes nem sempre são,
Imprimindo por vezes ao coração
Aquela rude languidez vernácula.
               
Mas a doce esperança salvadora,
Lâminas e lágrimas, pode vencer.
Da vil derrota faz em nós renascer
A perdida capacidade sonhadora.

E aquele devaneio da felicidade
Há de ser-nos novamente palpável
Quando a nós outro ser amável
Conquistar com sua afabilidade.


Robson Heleno