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domingo, 29 de abril de 2012

Sem Limites


     Já era dia quando chegou-me ao ouvido que eu só teria mais aquele dia. A princípio julguei ser sonho, mas bastaram alguns segundos para me dar conta que era real. Da rua vinham gritos, risadas, o barulho ensurdecedor do motor dos carros. Ligaria a televisão para saber se era aquilo, mas o grito de alguém veio pela janela a confirmar minhas suspeitas: “É o fim do mundo!”, bradava o infeliz antes de ser atropelado.

     Fui até a janela e o caos se desenhou diante de meus olhos. Vi pessoas que corriam sem saber para onde ir, outras se abraçavam e choravam o fim que se aproximava, alguns gritavam eufóricos como se estivessem alegres com aquilo. Tudo era tão surreal, mas minha calma parecia ser ainda mais. Não partilhava daquilo tudo, era como se não fosse acontecer comigo, como se eu fosse um mero expectador do apocalipse iminente.

     Até que fui tocado por meus pensamentos: o que fazer? O tempo está correndo mais rápido do que antes e agora parece que pretende parar, o que fazer antes disso? Respostas surgiam de todos os cantos de meu pensar. Havia tanto a ser feito, porque as coisas tinham que ser abreviadas daquela forma? Porque, se havia pouco que eu despertara para a vida, de fato? Por mais que quisesse fazer conjecturas, era preciso definir quais seriam os últimos passos de minha existência.

     Mas escolher o que fazer não era nada fácil. Afinal, seriam os últimos momentos dessa vida conturbada. Era preciso escolher algo realmente válido. Mas o quê? Poderia ler um bom livro, ou até mesmo escutar, finalmente, os CDs da minha coleção que eu nunca sequer tirei da embalagem. Poderia ligar para meu melhor amigo e ter uma boa conversa, daquelas que fazem as horas passarem sem que se sinta. Porém, talvez ele não partilhasse do mesmo desejo.

     E se eu cedesse a todos aqueles impulsos que sempre reprimi? Aos desejos que as convenções sociais sempre me impediram de saciar? Afinal, não haveria amanhã para enfrentar as conseqüências ou a reprovação por parte dos outros. Contudo, o maldito senso de pudor, já arraigado em mim, me convencia a fazer o contrário. Talvez por não desejar ser lembrado como o cara que surtou nos últimos momentos da vida.

     Eu já havia desistido de minha idéia quando uma mulher passou em frente à minha casa. Corria nua  cantando músicas de um tempo distante. Percebi sua felicidade insana, mas não tive coragem para acompanhá-la. Ela passou e logo atrás vinha um homem. Presumi estava a segui-la. Alguns minutos depois ouvi alguns gritos, que depois se transformaram em gemidos. Decerto o homem a alcançara e estava por saciar sua derradeira vontade.

     Vi quando dois automóveis colidiram em frente à minha casa. Vinham em alta velocidade e pude ver quando se encontraram: o metal sendo retorcido enquanto os vidros estouravam em mil pedaços. Alguns segundo após a colisão, vi quando os motoristas saíram de dentro dos veículos. Ambos estavam bastante machucados, cambaleantes. Caminharam ao encontro um do outro e, em seguida, se abraçaram. Pensei serem amigos que realizavam um desejo em comum.

     A manhã avançava e eu não sabia o que fazer. Já começava a me preocupar quando ouvi aquela voz doce: “Amor, fecha essa janela. Esse barulho todo não está me deixando dormir. Vai, fecha essa janela e vem ficar comigo.” Naquele instante descobri o que faria: aproveitaria o tempo que me restava junto dela. Ficaria ali com a mulher que amo e deixaria que o mundo acabasse sem mim.


     Pensei em contar-lhe o que acontecia. Mas me contive. Seria egoísta pelo menos uma vez na vida. Mas o seria por um amor incondicional, que seria meu último desejo. E, apenas o fiz, por imaginar que aquela seria uma vontade em comum. Sabia que naquele momento poderia viver o amor pelo amor, sem preocupações ou conjecturas sobre um futuro incerto. Enfim poderia amar sem medo, sem limites.





quarta-feira, 18 de abril de 2012

Sonho

   Certa vez me achei em um lugar desconhecido. Era belo, bem mais que os demais. A paisagem era um deleite ao meu olhar: um vasto campo coberto pela verde relva ornado aqui e ali por árvores marchetadas de frutas, que eram como ornatos coloridos contrastantes ao céu límpido acima, manchado em alguns pontos por pequenas nuvens. A suave canção regida pelos pássaros acarinhava-me os ouvidos. O sol luzia majestoso, mas não me aquecia de todo. Era como se ele beijasse o meu rosto enquanto a brisa o afagava.
     Diante de tantas belezas, não me contive, me pus a explorar aqueles campos idílicos. A cada passo, sentia-me leve, como se a liberdade por fim fosse real, não a mera abstração da qual sempre ouvi falar. Cheguei, por fim, a um vale onde um rio convertia-se em cachoeira. Detive-me por alguns instantes contemplando o espetáculo que a luz criava ao atingir as gotículas de água que passeavam pelo ar. Ficaria o dia inteiro naquela hipnose maravilhosa.
     Contudo, ouvi uma voz macia, feminina, chamar meu nome. Procurei curioso, pela fonte daquele chamado, mas nada vi. Repentinamente, a cachoeira já não era mais atraente, descobrir a dona daquela voz tornou-se minha vontade. Segui através das margens do rio ignorando os peixes que saltavam intentando furtar minha atenção. Caminhei alguns minutos para enfim encontrá-la sentada sob uma árvore. Parecia me esperar. Acompanhou-me com o olhar enquanto eu me aproximava.
     Contive os passos diante dela, esperando por alguma palavra. Mas ela nada disse. A ousadia me impeliu a sentar ao seu lado. Por alguns segundos ela olhou em meus olhos. Por fim sorriu. Pegou em minhas mãos e, sem nada dizer, convidou-me a segui-la. Corremos através dos campos. Meu fôlego parecia infinito, tive certeza disso quando chegamos onde ela desejava. Estávamos em um lugar alto, uma espécie de montanha, de onde eu podia ter mais bela das visões. O sol já se punha no horizonte. Assumia agora uma tonalidade avermelhada tão sedutora ao meu olhar.
     Entretanto, ela não me levara ali para ver o sol se pôr. A moça então chamou meu nome uma vez mais. Olhei em sua direção e lá estava ela, mais linda que antes, tendo o vermelho do sol refletido no brilho de seu olhar. Porém, não estava sozinha. Ao seu lado, estavam todas as pessoas que amei em minha vida: meus pais, familiares, amigos; pessoas que há muito eu não via; pessoas que há muito eu havia perdido. A única desconhecida ali era a moça.
     Naquele momento a verdade por fim veio a mim. Aquilo não era real. Estava imerso em mais um daqueles sonhos que vêm para nos trazer à mente as lembranças que se perdiam na memória; que parecem ter por fim renovar nossas forças para prosseguir. A moça, percebendo que eu sabia que tudo aquilo era fantasia, abraçou-me com força, beijou-me e disse: “Por favor, fique, esse é o mundo que mereces. Aqui não há dor, tristeza ou solidão.”
     Despertei repentinamente em meu quarto. Ainda sonolento, abri os olhos. Deparei-me com as paredes sujas a minha volta, o barulho dos carros que corriam lá fora, o cheiro incômodo da fumaça que atravessava a janela entreaberta, o calor que me fazia suar. Poderia ter levantado para enfrentar mais um dia, mas decidi voltar a dormir. A moça estava certa, sonhar era melhor. Não que me faltasse coragem para encarar a vida real. Apenas percebi que, quando a realidade se mostra difícil, o melhor a fazer é se apegar aos sonhos, pois somente eles nos levam a mundos perfeitos.  

quarta-feira, 4 de abril de 2012

(Re)começo

     Sorrateira, sentou-se ao meu lado. A despeito de seu silêncio, o perfume denunciou sua presença. A discrição conteve meu ímpeto de olhá-la de súbito. Mas pouco resisti, após alguns segundos, lá estava eu a admirá-la em silêncio. Passou a mão pelos cabelos. Pediu uma bebida. Sabia ser possuidora de meu olhar naquele instante. Aproveitando-se disso, dardejou-me um olhar inesperado. Confesso que tremi, mas tentei parecer firme. Ela me manteve em sua mira. Parecia esperar por algo. Esconderam-se as palavras. Restou-me apenas um tímido ‘oi’. Era o suficiente.
     Principiamos uma conversa, daquelas despretensiosas, mas cheias de intenções. Para ajudar na fluidez da prosa, pedi um uísque. Algo que eu jamais provara. Contudo, eu estava com sorte. A ardência do primeiro gole converteu-se em uma vermelhidão instantânea em meu rosto, o que denunciou minha inexperiência com o álcool, mas também furtou algumas risadas de minha parceira. Embora desconcertado, encarei aquilo como um bom sinal. Pedi outra dose. A conversa prosseguiu.
     A priori, pensei em não falar muito sobre mim. Confiava na teoria de que ‘elas sempre tem mais a dizer’. Contudo, ela era tão simpática, que não envolver-me pareceu impossível. Muito me disse sobre si, suas preferências, seus desejos. A cada minuto parecia mais preso ao encanto daquela desconhecia. Era incrível como ela possuía tudo o que eu há muito buscava. Além do que, meus olhos pareciam apaixonados por aquele rosto. Insistiam em permanecer presos àquela visão.
     As horas passaram por mim, que fixado na conversa, não percebi que a madrugada chegava. Devo reconhecer que as doses de uísque contribuíram um pouco para que a noção de tempo se perdesse em mim. Contudo, ela estava atenta. Disse-me que era tarde, que precisaria ir. Convidou-me para acompanhá-la, terminar a conversa em outro lugar. Discordar era impossível. Mesmo porque, o torpor da embriaguês já se apoderava de mim. Sabemos bem como as pessoas ficam suscetíveis quando excedem seus limites. Meu caso era bem mais delicado, eu sequer sabia possuir um limite até então.
     Combinamos que a conversa teria prosseguimento na casa dela. Como ela não me deixou dirigir, seguimos em seu carro. Durante o caminho, trocamos algumas palavras. Porém, ao chegarmos a casa, nada mais foi dito. Toda a formalidade do diálogo deu lugar às intenções, que durante toda a noite estiveram escondidas em nossas palavras, olhares. Surpreendia-me a cada instante. Ela me beijava, acariciava-me como se já me conhecesse, se soubesse exatamente minhas preferências. Sonhei, mesmo antes de dormir.
     Despertei em um quarto que, embora não fosse o meu, me parecia bastante familiar. Ouvi passos no corredor. Uma voz de criança. Vesti-me apressadamente. Fui até a porta e não ouvi mais nada. Abri-a se segui pelo corredor que parecia levar ás demais dependências da casa. Haviam quadros fixados às paredes. Observei cada um enquanto seguia com cautela. Eram-me familiares, mas não sabia dizer de onde. Após alguns metros, nas paredes não havia mais quadros, mas sim fotografias.
     Observei-as. Eram fotos da moça que eu conhecera noite passada. Em algumas ela estava sorrindo. Em outras parecia mais séria. Em algumas ela estava abraçada a uma criança. Estava a poucos passos do que parecia ser a sala da casa. Restava apenas mais uma fotografia a ser vista. Passei por ela com calma. Parei a sua frente e a olhei. O choque foi inevitável: na imagem estava a moça abraçada a mim e ao menino das fotos anteriores. Sorríamos. Parecíamos felizes. Mas, como aquilo era possível? Desesperei-me.
     No entanto, antes que pudesse esboçar qualquer reação. Senti quando alguém me abraçou por trás. A julgar pelo abraço à altura da minha cintura, presumi que era uma criança, ou alguém muito baixo. Olhei e vi que era o menino da foto. “Bom dia papai, que bom que você voltou!” sorriu para mim. Fiquei estático. Nada entendi. Ela então surgiu ao fim do corredor. Percebendo meu nervosismo, veio até mim e tentou me acalmar com um abraço. Mas parecia impossível, a necessidade de compreender tudo aquilo me corroia. Coração acelerado, respiração difícil, porque tudo aquilo? Desmaiei.
     Acordei no mesmo quarto familiar de antes. Não estava sozinho desta vez. Sentada à cama a moça acariciava meu rosto. Pensei em fugir, mas meu corpo pesava. Ela então apanhou um álbum de fotografias. Com lágrimas no olhar, começou a mostrar-me fotos nossas. Algumas imagens mostravam o que parecia ser nosso casamento. Outras a gravidez, os primeiros anos do filho que parecia ser nosso. Aquilo tudo me confundiu ainda mais. Percebendo que eu nada entendia, decidiu falar-me:
     “Somos casados há oito anos. Aquele menino é nosso filho, tem seis anos. Sei que não recordas de nada, mas não é sua culpa. Há um ano você sofreu um acidente no trabalho. Aparentemente, nada grave lhe acontecera. Todos disseram ser um milagre, dadas as circunstâncias do fato. Viestes para casa e a nossa vida seguiria. Porém, após algumas semanas, começastes a ter alguns lapsos de memória, nada que suscitasse grandes preocupações. Tinhas dificuldades para lembrar nomes, lugares.
     Contudo, com o passar dos meses vi as coisas se agravarem. Em alguns instantes não reconhecias nem a mim, nem ao nosso filho. Mas, após alguns minutos parecias voltar ao normal. Precisavas de tratamento. Mas, antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, desaparecestes pela primeira vez. Preocupei-me, acionei a polícia, mas, em três dias voltastes para casa. Não entendias meu desespero, era como se aqueles três dias sequer existissem.
     Busquei ajuda. Fomos a diversos especialistas, mas nenhum conseguia identificar o problema, diziam que sua saúde estava perfeita. Na ânsia de estar enganada, convenci a mim mesma que eles estavam certos. Alguns dias se passaram sem qualquer sintoma se manifestar. Enfim parecia que tínhamos nossa vida de volta. Senti-me tão confiante que achei que poderias retomar a rotina de trabalho. Fostes ao trabalho como costumavas fazer, mas não voltastes. Isso aconteceu há dois meses.
     Procurei por você todos os dias. Angustiava-me saber que eu era a culpada por te perder. Vi minha esperança se esvair por meus dedos a cada dia. Até que, ontem, desisti por completo. Senti-me derrotada. Fui àquele bar para tentar fugir de mim. Sequer acreditei quando te vi sentado. Pensei em correr e te abraçar, mas temia sua reação. Foi então que sentei ao teu lado e te encarei desejosa de que recordasses tudo quando olhasse em meus olhos. Mas, tua reação me disse o contrário. Pensei em fugir dali, mas me surpreendestes com teu cumprimento. Percebi então que para te trazer de volta, teria que conquistar-te novamente, como na noite em que nos conhecemos. Foi o que fiz. Sei que isso tudo deve parecer loucura. Mas, é essa a verdade. Agora que estás aqui, por favor, não vá, fique. Se preciso for, viveremos tudo de novo.”
     Atendi àquele pedido e fiquei. Infelizmente as lembranças das fotografias jamais voltaram a mim. Mas, pude construir novas recordações com minha família. Diria que minha vida (re) começou naquela noite em que aquela mulher sentou-se ao meu lado naquele bar e me deu tudo o que eu havia perdido.