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segunda-feira, 14 de março de 2016

Nosso anjo

Como que em preces, tinha as pequenas mãos unidas, com os dedinhos entrelaçados. Mas, as súplicas eram todas nossas. O semblante sereno, nos trazia paz e tristeza ao mesmo tempo. Era um anjo. Nosso anjo, que nos deixava, prematuramente. Eis o cerne de toda a dor. E não havia, entre nós, quem não fosse invadido por aquele sentimento de desolação. Mesmo aqueles que não nos eram próximos, se viam tomados pela comiseração. A vida escrevera uma passagem trágica no roteiro, e não havia como estarmos preparados para tal reviravolta.

Impossível olhar seu pequeno rosto, cercado de alvas flores, e não pensar em toda a vida que ele poderia ter tido. Seus brinquedos consigo, sem a vida que os anime. Os primeiros passos, palavras, as descobertas da primeira infância, a janelinha que um dia se abriria em seu sorriso. Tantos sorrisos que já não teremos, já não veremos. Tantas linhas de uma história que, infelizmente, não será escrita.

Entre orações e cânticos, o anseio por alento, não só para as nossas almas, mas para aquela que nos deixou. O clamor em uníssono pelo amparo divino, a união pela dor. Provas de que há, na morte, algo que nos mostra o quão ínfimas são as vicissitudes cotidianas, assim como nossas vaidades. Sempre há muito a aprender. Terá sido esta, talvez, a missão de nosso pequeno anjo? Nos unir e nos dar lições?

Sim, pois muito aprendemos com ele, durante sua breve passagem. Seu apego à vida neste quase um ano, nos mostrou que é preciso lutar até o fim. E não há quem possa dizer que ele não lutou. Mas, infelizmente, não há triunfo em todas as batalhas. E, nesta última, o perdemos.


Ao entregá-lo de volta à terra, derradeiras e inevitáveis lágrimas. Já não o veremos. Residirá, agora, em nossos corações. Guardaremos em nós sua doce lembrança. A recordação de uma vida que agora se resume em saudades. Seu nome entalhado em mármore, e saudades. Eis o que nos resta.


Pierry Silva Guimarães.
25/04/2015 - 13/03/2016



terça-feira, 1 de março de 2016

A vida não segue trilhos

 “A vida não segue trilhos”, a frase ecoou em minha mente, e despertei daquela espécie de transe que só o prazer oferece. Ofegante, eu tinha sob mim o corpo nu daquela moça que eu sequer sabia o nome. Nosso suor era um só, assim como nossos corpos conectados. O pulsar do meu coração, no entanto, era o único que eu conseguia sentir. Foi quando me dei conta que tinha as mãos envoltas no pescoço da moça. Pior ainda, eu apertava forte. Soltei-a em um sobressalto e, já de pé, observei seu corpo imóvel sobre o sofá. “Está morta. Eu a matei.”, pensei. “A vida não segue trilhos”, repeti involuntariamente.

“A vida não segue trilhos”, foi o que ela me disse, enquanto eu me enrolava tentando justificar o porquê de não poder entrar em seu apartamento àquela hora da noite. “Tenho trabalho amanhã, e reunião, compromissos agendados...”, dizia eu, quando ela disparou a frase que me deixaria sem argumentos. Simplesmente calei e a segui porta a dentro. Ela não acendeu as luzes. Mergulhou na penumbra e pediu que eu o fizesse. Tateei por alguns instantes pela parede, até encontrar um interruptor. Pressionei-o e, como num passe de mágica, a luz a fez surgir nua diante de mim. Deitada sobre o sofá, com as pernas cruzadas, escondia de meus olhos o mistério que estava prestes a revelar.

A frase então começou a fazer sentido. Seria o mantra de uma noite que, pela primeira vez em minha vida, era imprevisível. Há duas horas estava eu escolhendo um filme qualquer em uma loja de departamentos, para distrair minha solidão. Agora contemplava, extasiado, aquela linda vagina de pelos descoloridos e levemente arroxeados. Algo me dizia que eu nunca mais veria algo tão exótico em minha vida. Sim, pois minha nova amiga não era exatamente o tipo de pessoa com a qual eu costumava me relacionar. Era ela dessas moças descoladas, de piercings e tatuagens. Dessas cuja ousadia te faz temer e desejar ao mesmo tempo.

- Assiste esse aqui. Vai te fazer bem. - Disse ela enquanto apontava para a capa de um filme que eu não reparei qual era, pois meu olhar não foi capaz de se conter diante da tatuagem de traços delicados que começava em sua mão e serpenteava pelo braço. Encontrei o final do desenho próximo ao ombro da moça, quando me deparei que aqueles olhos em mim.

- Gostou? - Indagou. Não consegui responder nada. Voltei o olhar para o nada, enquanto fingia procurar o filme que ela indicara. A moça deu de ombros e saiu. Ela deu dois passos e, sabe-se lá por qual motivo, eu consegui balbucear algo como “Assiste comigo”.

Ela voltou sorrindo, enquanto eu permaneci imóvel, com a cara de idiota, padrão. Passou por mim, vasculhou por alguns segundos entre os filmes. Apanhou um e disparou:

- Assisto esse. Mas tem que ser na minha casa.

O máximo que consegui fazer foi assentir com a cabeça, num gesto mecânico e involuntário. Dez minutos depois eu subia em um ônibus seguindo para o lado oposto da cidade, junto àquela desconhecida, para ver um filme que eu sequer sabia qual era.

Durante todo o trajeto, ponderei sobre o que estava fazendo, e como diabos havia chegado até ali. Ela respeitou o meu silêncio, contemplando as ruas que passavam pela janela, enquanto fumava um cigarro.

Ao descer do ônibus, eu havia tomado uma decisão. Acompanharia a moça até a porta da casa dela, seja lá onde fosse. Depois daria um jeito de voltar para casa. Já tivera aventura demais por uma noite. Queria voltar para a segurança de minha rotina. E o teria feito, não fosse aquela frase para desarmar minha obstinação.

Todos estes eventos, que haviam me conduzido até ali, passaram diante de meus olhos rapidamente, até que me deparei novamente com o corpo dela estendido sobre o sofá. Ela parecia não respirar. A cada segundo, a certeza de que eu a matara aumentava. Caminhei desesperado de um lado para o outro. Fugir. Polícia. Cadeia. Palavras e ideias que corriam através de meus pensamentos. O que fazer? O desespero me invadia, e eu amaldiçoara o momento em que havia replicado à provocação dela. Tivesse ficado quieto, isso não teria acontecido. Estaria em casa, comendo comida congelada e vendo televisão, como todo bom idiota solitário costuma fazer.

Estava prestes a enlouquecer. Avistei a janela. Pensei em tomar um caminho mais fácil até o piso térreo. Não tive coragem. Fui tomado pela covardia e resolvi fugir. Corri e apanhei minha calça jogada sobre o sofá. Era só me vestir depressa e correr. Ninguém saberia que eu estive ali. Fora uma fatalidade. Eu não queria. Eu nem sabia o nome dela. Eu tremia e vestir a calça era impossível. Sentei no chão, enquanto eu tentava desesperadamente me vestir. Até que ouvi alguém tossir. Minha alma congelou.

Demorei alguns segundos para reunir coragem necessária. Quando consegui, voltei meu olhar em direção ao sofá, senti minha alma escapar junto com o suor. Ela estava voltada para mim, me olhando. Antes que eu pudesse comemorar o milagre, disparou:

- Eu falei para você não apertar muito. Se forçar demais, eu fico sem ar e desmaio. Não é assim que funciona. Você precisa sentir o meu corpo.

Atônito, eu não conseguia dizer nada.

- Vem. Tira essa roupa. Vamos tentar novamente. Eu vou te ensinar. Posso fazer em você. É gostoso.

As coisas então ficaram menos turvas em minha mente. Tudo começara com uma fita que ela envolvera no pescoço, e apertava enquanto eu a penetrava. Aos poucos, lembrei que ela confiou a mim o controle sobre a constrição da fita. Em algum momento, devo ter tirado a fita e resolvido sentir com minhas próprias mãos. O calor, o prazer. Sentir o coração pulsar nas extremidades. Não tive culpa, afinal.

“A vida não segue trilhos, né.”, ela repetiu, cínica, enquanto eu tirava a calça, liberto do desespero. Só voltaria para a minha casa três dias depois. Na semana seguinte, descarrilei de vez e vivemos juntos desde então.




Fonte imagem: https://media.deseretdigital.com/file/d22c751221.jpg?crop=top_0~left_0~width_1000~height_661&resize=width_630~height_417&c=8&a=5bcc9dc1