Páginas

domingo, 30 de setembro de 2012

Futebol Paixão

     Domingão, e lá estávamos nós, entregues àquelas que são duas das grandes paixões dos brasileiros: boteco e futebol. Éramos seis: Beto, Zezão, Chico, Júnior, Catarro e eu. As garrafas de cerveja sobre a mesa já haviam testemunhado meia dúzia de histórias e agora nos viam concentrados olhando para a televisão presa à parede. Não era qualquer jogo, era um FlaxFlu! Ânimos a flor da pele. Futebol é coisa séria. É paixão! Tem gente que faz de tudo pelo seu time. Em dia de clássico então. Nós mesmos estávamos lá, reunidos no boteco do Seu Manoel, contrariando opinião das esposas, filhos. Tudo pra acompanhar o jogo.
     Seu Manoel, como todo dono de boteco, tinha a eterna mania de limpar o balcão com um pano encardido. O Zezão dizia que era um cacoete. Mesmo porque não importa o quanto ele limpasse, o balcão sempre parecia estar sujo. Atento para a escalação dos times, Seu Manoel soltava piadinhas sobre os nossos jogadores. Ele era vascaíno, logo, odiava tanto o Flamengo quanto o Fluzão. Mas, o importante no momento era provocar. Chamava os atacantes de perna de pau, o técnico de burro. Parecíamos ignorar. Mas só enquanto ele não decidia apostar cervejas pelo resultado. Como éramos os únicos clientes, ele não demorou muito propor a aposta. E nós, claro, aceitamos, já pensando nas cervejas que íamos ganhar.
     Aos vinte minutos do primeiro tempo eu já não tinha unhas. Os dois times tiveram chances de gol, mas perderam. O Catarro já havia xingado o técnico do Fluzão pelo menos três vezes. O Naldo parecia direcionar mais atenção ao juiz: a cada falta, um elogio à mãe do infeliz. O resto de nós, inclusive eu, mantinha a concentração. Vibrávamos a cada drible. Sofríamos a cada passe errado. Aos quarenta uma bola na trave. Respiramos aliviados, afinal, levar gol antes do fim do primeiro tempo ia deixar todo mundo nervoso na hora do intervalo. O juiz apitou e o placar seguia igual.
     Após o revezamento no banheiro do boteco, voltamos à mesa e pedimos mais uma cerveja. Então surgiu à porta um figura magrelo de camisa vermelha. Olhou para nós e gesticulou. Ninguém entendeu nada. Ele se aproximou tímido, e fez mais alguns sinais com as mãos. Continuávamos sem compreender, até que o Seu Manuel resolveu o mistério: “Vocês tão bêbados demais para perceberem que ele é mudo?!”. Olhamos novamente para o visitante e ele seguiu com os gestos. Pelo que eu entendi, ele estava pedindo dinheiro.
     Mas, ninguém tinha nada nos bolsos. Era uma espécie de tradição. Depois de sucessivos calotes, o Seu Manoel não vendia fiado. Como éramos clientes fiéis, ele acertou que, em dias de jogo, nós deixaríamos determinada quantia com ele e poderíamos beber a vontade. Enquanto nossa cota não acabasse, é claro. No entanto, não deixaríamos nosso amigo ir embora assim. O Catarro puxou uma cadeira e ofereceu um copo de cerveja. O segundo tempo ia começar. O mudo aceitou. Sentou-se e começou a assistir o segundo tempo conosco.
     O jogo seguiu tenso. Passes errados, substituições equivocadas. O tempo corria e nada de gol do Fluzão. Seu Manoel se divertia com a nossa agonia. E, só para nos torturar, falava das cervejas que ia ganhar se o Flamengo por acaso fizesse um gol. Quanto ao nosso sétimo homem, ele permanecia calado, por razões obvias. Embora não vibrasse conosco nos bons lances, mantinha o olhar na tela. O Chico cuidava para que o copo dele não ficasse vazio. Depois de um tempo, percebi que a intenção dele era embebedar o coitado do mudo. E o pior é que ele estava conseguindo.
     Trinta minutos de jogo e todo mundo já bebia a cerveja como se fosse água. O nervosismo dava sede. E o mudo nos acompanhava. Já havia se enturmado. Sorria das nossas piadas como se as entendesse. Ninguém mais estava sóbrio. Aos quarenta já estava todo mundo conformado com o empate. Não íamos ganhar as cervejas que tínhamos apostado com Seu Manuel. Mas, pelo menos não tínhamos perdido a aposta. O mudo, a essas alturas, já estava pesado, quase cochilando na cadeira.
     Quarenta e cinco do segundo tempo, o juiz deu três minutos de acréscimo. Nós já parecíamos indiferentes ao jogo. Os jogadores, cansados, já não corriam tanto. Não sairia mais gol ali, eles estavam em campo só pra cumprir tabela. Seu Manoel pediu que acordássemos o mudo. Assim que o jogo acabasse ele fecharia o bar e, nós o havíamos convidado para beber, nós deveríamos acordá-lo e levá-lo embora. O Catarro pediu nossa atenção porque ia fazer uma brincadeira com o mudo. Tiramos os olhos da televisão por alguns segundos, e nos voltamos ao coitado.
     Mas ele abriu os olhos de leve, antes que o Catarro pudesse fazer alguma coisa. Olhou em direção à televisão e, com um sobressalto da cadeira, soltou o grito forte: “Goooooooooooooooool”. Assustados, nossa primeira reação foi olhar para a televisão. Na tela, o replay denunciava: gol do Flamengo aos quarenta e sete. Trocamos olhares por um segundo e não sabíamos o que era pior: ele não ser mudo, ou ele ser flamenguista.
     O Júnior passou a mão em uma garrafa para ir pra cima do mudo. Mas, quando olhamos para o lado, só estava a cadeira. Saímos à porta do bar e o avistamos dobrando no fim da rua. Confesso que até hoje nunca vi ninguém correr tão rápido. Depois disso, só nos restou beber mais uma e pendurar as outras que havíamos perdido na aposta. Sempre que acontece um clássico, eu conto o episódio desse FlaxFlu. É, como eu havia dito no início, futebol é paixão, dessas que faz até mudo gritar quando sai um gol do seu time.



fonte imagem: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEizHkpn8YULhTmmvYxdpxcEgp0Y1T0js1b3nbyv0U35KmbDWXQrsCgP1WKdDMQzSbyqDov5eHIdWSH6N-u4igu6h_St4mI5TeJIzC88vXSq-uOTSSYoQxJ3jNV2OwpTEygDDYSSuqNlQOI_/s320/Fla-Flu+%25282%2529.jpg

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Capitalismo

     Por favor, se achegue mais, deixe eu contar uma história dessas que a vida nos dá. Coisa verdadeira, que eu vi de perto. Por isso, com detalhes eu falo. Se errar alguma coisa, é culpa da memória. Nasceu uma vez um João, na mesma rua que eu morava. Mais um no meio desses tantos, mas bom das idéia. Desses que se tivesse oportunidade ia longe, sabe. Mas, pobre nasce com pé no chão, que é pra não querer voar. Assim a gente se conforma. Mas o João não. Esse nasceu pra querer mais que nós. Mas, era boa pessoa.
     Cresci junto dele. Era coisa de cinco anos que separava a gente. O ofício a gente ganhou em casa. Meu pai trabalha com o dele e a gente aprendeu junto a profissão. Era pra levar a vida de sempre, toda vida: trabalhar pros patrão, juntar algunzinho, comprar terreno, casar e rezar pra ter uma casa boa antes de ficar velho. Eu contava meus plano pro João, mas ele era calado. Vivia de pensar nos canto. Trabalhava modo insatisfeito, como não quisesse fazer as coisas. Era mais bom de conversa que de serviço.
     Certa feita o João deu de aparecer com livro no trabalho. “Livro é coisa de gente rica”, eu dizia pra ele. Mas ele não ouvia, ficava lendo no almoço. O problema é que depois ele já fazia isso direto. Enrolava serviço pra ficar folheando. Tava ficando sabido, dava pra perceber quando ele vinha conversar com a gente. Até o dia que o chefe descobriu. Riu do João, disse que aquilo não era pra ele. João deu resposta e o patrão mandou ele embora. Justa causa, ele disse. Teve gente que gostou, achava o João metido a besta. Eu fiquei triste. Mas, fazer o quê?
     Passou um tempo e o João apareceu de volta. Chegou com nós, falando que nós era vítima de injustiça. Dizia que o patrão não gostava dele, nem de ninguém. Disse que todo mundo era explorado, ganhava menos que merecia. Até palavra nova ele arranjou, falava de um tal de capitalismo. Dizia que ele era o culpado por a gente trabalhar tanto. Que ele corrompia os homem, que era o maior dos mal. Devia de ser coisa dos livro. Ninguém entedia muita coisa, mas ele falava bonito. Pediu ajuda pra todo mundo, dizia que ia pra justiça contra o patrão. Falou que tinha sido enganado, e que ia provar. Que o chefe ia pagar caro pra ele. Que quem apoiasse ele, ia ser ajudado depois.
     Muita gente ficou com medo no começo, mas ele era bom de convencimento. No fim todo mundo tava com ele. O João se tornou como líder pra nós, sabe. Ele falava, nós ouvia. Todo mundo confiava nele. Era um de nós que tinha um conhecimento que nós não tinha. Ele falava dos direito que a gente tinha. Que depois que ganhasse o patrão na justiça, nós tudo ia melhorar de vida. Que a vitória dele era vitória de todo mundo. E nós apoiava ele.
     E veio o dia do João enfrentar o patrão. Todo mundo tava do lado dele. Se ele ganhasse, nós tudo ganhava. Se ele perdesse...ninguém nem pensava nisso. O João ia ganhar, não tinha erro. E aí nós acompanhou ele. E viu quando o juiz deu vitória pro João. Todo mundo comemorou. Foi coisa grande, dessas de sair no jornal. O patrão foi obrigado a pagar dinheiro muito pro João. Todo mundo começou a fazer plano. João tinha prometido que ia ajudar nós, de certo ia dividir o dinheiro com todo mundo.
     Pois é...passada a euforia, o João veio com nós. Agradeceu e tudo mais. Disse que era vitória importante pra nossa classe. E que ia ajudar nós tudo, conforme tinha prometido. Todo mundo se animou pensando na generosidade do João. Pois é...o que nós esquecia, é que o João sempre teve com nós, mas nunca foi um de nós. João pensava diferente, como eu disse no início. A gente nasceu pra ser peão. Mas o João, não queria pé no chão. E só quando ele disse a ajuda que ia dar, que a gente percebeu isso.
     Depois que o chefe perdeu na justiça, a empresa dele faliu. Todo mundo ficou desempregado. O João, rico que tava, abriu uma empresa. E pra ajudar nós tudo, como tinha prometido, contratou todo mundo. Pra mostrar que era bom, aumentou nosso salário em uns dez tostões. Agradeceu todo mundo e nunca mais se misturou com nós. Não tratava mais ninguém pelo nome. Só vinha pra cobrar serviço. A vida se manteve a mesma, só mudou o patrão. Ninguém entendeu o que tinha acontecido com o João. Alguns diziam que ele nunca foi gente boa, que sempre enganou todo mundo. Outros diziam que foi o dinheiro que mudou a cabeça dele. Mas, cá pra nós, eu tenho meu palpite: pra mim, isso foi coisa do tal capitalismo.




Fonte Imagem: http://www.mundoeducacao.com.br/upload/conteudo_legenda/a5142999cfbbca64068f7177a8ada318.jpg

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Tentações

     Em eterno flerte com minha pobre alma, lá estão elas. Vivem a testar minha resistência. Quando fortalecido estou, a mim, pouco se mostram. Mas, se me mostro fraco, me caçam com olhar predador. Parecem pressentir minha vulnerabilidade. Ponderam seus ataques cuidadosamente. Às vezes sutis, me tentam com olhares, sorrisos. Quando vorazes, investem diretamente, sem temer conseqüências. Atiçar é o seu dever. Vencer-me, seu prazer. Resistir é meu calvário. Mas, nem sempre.
     Contudo, reconheço, são elas que temperam minha vida. Afeito sou desse jogo de resistência, essa eterna vontade de fazer o que quero, mas não posso. Assim me conheço, me fortaleço. Afinal, jamais temerei uma tentação a qual já resisti. Da mesma forma, lembro de evitar àquelas que certa vez sucumbi. Contudo, bom seria se as coisas fossem tão simples. Infelizmente, não são. As tentações são perspicazes demais para se deixarem resistir tão facilmente.
     Elas conhecem meu gosto, se adéquam a ele. Mutantes que são sempre me surpreendem. Imprevisíveis, de tudo fazem para seqüestrar minha atenção. Por vezes, conseguem. O que torna o jogo mais interessante. É da natureza das tentações a renovação. A elas convém a necessidade de provocar, seduzir. Do contrário, perdem seu status, tornam-se costumeiras. É sempre fácil resistir ao que já conheço. O desconhecido é o que me provoca receio. Assim como incita minha curiosidade.
     Tão subjetivas, são as tentações. Conhecem as fraquezas de cada um. Jamais despertam interesses semelhantes. São nossos demônios particulares, que buscam no mundo aquilo que ao nosso ardor atrai. Cegam a racionalidade algumas vezes. Alimenta-se de nossas paixões. São criadas por nós, para nós. Por vezes potencializadas pelo objeto de nossa cobiça. Seja este material, afetivo. Representam a luta contra nosso inimigo mais forte: nós mesmos. Vencer não é tão simples.
     Como havia dito antes, nem sempre resisto. Vez ou outra é preciso lutar contra gigantes, batalhas hercúleas, daquelas que não originam vencedores ou vencidos. Nestes casos, o melhor a fazer é por fim à guerra antes de seu princípio. Culpado será Davi por, na ausência de pedras, abraçar Golias? No entanto, existem momentos em que as vontades se encontram. Tentação e tentado que se desejam com ardor irresistível, como precisassem um do outro. São casos raros, é verdade, mas acontecem. Haverá culpados então?
     Sempre presentes na minha vida, e na de todos, estão elas. Do contrário, não pediríamos, em preces, forças para não “cair em tentação”. Contudo, diria que elas é que “caem sobre nós”. São nuvens a mudar nossos tempos de calmaria. Sempre dispostas a tornar as coisas mais difíceis, interessantes. Não temos controle sobre suas ações. Mas somos senhores das nossas. Resistir ou sucumbir é questão de escolha. Contudo, lembre-se: uma tentação jamais vem sozinha, por trás de sua sedutora face, há um mar de conseqüências. Depois de vencido, aceitá-las é preciso.



Fonte Imagem: http://geracaocrista.com/wp-content/uploads/2011/08/tenta%C3%A7%C3%A3o.jpg

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

A ária e os conselhos

     Passeava o olhar pelos campos da juventude quando me deixei seduzir por certa melodia deixada ao vento. De doces tons era composta. Provinha do mais belo instrumento. O primeiro a atrair minha atenção. Em face ao enlevo evidente, recordei o que, certa vez, disse-me meu pai: “A infância de ti se despedirá em breve. O encanto das melodias haverá de te atrair. Este só é perceptível por ouvidos de homem. Mas, tenha cuidado, às vezes, belos sons enganam”. Quisera eu tê-lo ouvido. Entretanto, ignorei o alerta, entreguei-me ao torpor daquela melodia. Tudo era perfeito então, e eu poderia permanecer naquele sonho por toda a vida. Porém, repentinamente, a música parou. E eu fiquei a dançar no silêncio. Quando me dei conta, estava só. Aquele instrumento já era tocado por outro.

     Despertei para o mundo surdo de antes. As sensações eram vazias. O silêncio de outrora, agora me machucava. Diante de minha tristeza, meu pai deu-me o alento: "A primeira sempre será eterna, pois, necessária é, para que nossos ouvidos despertem para todos os sons que passeiam pelo ar. Conhecerás muitos instrumentos, de melodias variadas. O mundo lhe aguarda. Descubra a multiplicidade dos sons, apaixone-se por eles. E, quando, dentre tantos, um te agradar de um modo diferente, venha até mim". Palavras sábias foram aquelas. Relutei, é bem verdade, mas acabei por aceitá-las.

     Segui, com passos firmes, atento a tudo que minha audição percebia. Tantas eram as melodias que eu reconhecia agora. Solitárias, melancólicas, alegres, apaixonadas. Tentavam-me, todas, a conhecer sua fonte de origem, entregar-me a elas. E, como não havia impedimentos, segui o conselho de meu pai. Pousei em meus braços muitos instrumentos e deles extrai músicas peculiares. Alguns eram doces, e por vezes me roubaram suspiros. Outros, mais enérgicos, exigiam meu fôlego para revelar o ápice de sua sonoridade. Havia, ainda, aqueles que a solidão fizera desafinar, mas que ao primeiro dedilhar recordavam seu timbre. Por vezes, me deparei com instrumentos parecidos, mas cujas melodias eram distintas. A forma não se sobrepõe à essência, afinal.

     Corri com os anos e conheci tantos instrumentos, que seria difícil me expressar em números. Entreguei-me a todos, assim como a mim também se entregaram. Descobri que, não importa o quanto o tempo castigue o instrumento, com um pouco de carinho, ele sempre revela a beleza de sua melodia. Basta apenas saber o modo exato de tocá-lo. E eu havia aprendido como fazê-lo. Contudo, embora muitos houvessem atraído minha atenção, nenhum conseguia mantê-la por muito tempo. As harmonias logo se mostravam obvias, previsíveis. Era então o momento de dizer adeus e seguir minha jornada. Eis a parte difícil: há sempre um apego entre o instrumento e aquele que o toca. Sempre que partia, deixava para trás uma última nota. Algumas de tristeza, outras de revolta. Mas, todas com um sentimento em comum: saudade.

     No entanto, ontem, veio até mim uma ária perfeita. Não era tão distinta das demais, mas me atraiu. Quis conhecer o instrumento de onde provinha. Ao chegar até ele, descobri que era especial. Quando o tomei em meus braços e ouvi um simples acorde tive vontade de render-me a seus sons. As palavras que meu pai um dia dissera fizeram sentido. Fui então à busca daquilo que ele há muito guardava. Percebendo o brilho em meus olhos, ele sorriu. Disse-me satisfeito:

"Pelo visto, seguiu meu conselho: conheceu muitos instrumentos e enfim encontrou aquele que eu havia mencionado. Em teus braços os tivesse e aprendestes a tocá-los. Muito já sabes, mas ainda resta um último conselho. É chegado o momento de se aperfeiçoar. Este que agora te toma à paixão é único. Ouso dizer que foi feito para ti. Deves agora dedicar-te a conhecê-lo a fundo, descobrir o que há por trás de cada nota, apreender a essência que o rege. Ame o seu instrumento, e ele também te amará, e te revelará a verdadeira pureza de seus sons. Mas não esqueça, ainda que o conheças tanto quanto a ti, ele jamais te pertencerá. A liberdade é o que deve lhes unir".

     Depois disso, nada mais disse. Saiu sorrindo, com aquele ar de quem cumpriu seu dever. Eu saí de casa. Enquanto atravessava a rua, ouvi uma linda melodia vinda de dentro da casa de meu pai. Era bela como nenhuma outra. Revelava o quão íntimo meu pai era de seu instrumento. Enfim eu compreendi o que ele quis me dizer. Era aquele o amor do qual ele falara. Uma vez mais, segui com passos firmes, disposto a seguir o conselho que me foi dado. Mas, dessa vez, rumo à ária do amor.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Amor de Margarina

     Grande era a dúvida que me consumia, quando quis o amor me achar. Diante de mim, inúmeras opções, era preciso ponderar sobre qual a melhor delas. Afinal, a matéria era de suma importância: qual marca de margarina escolher? Após alguns minutos, já havia descartado grande parte das pretendentes. Restavam apenas três. Mas minha dúvida se dava entre duas. A terceira eu desconsiderava, já que era a margarina do comercial do casal feliz. Sim, aquele comercial que mostrava um casal bonito tomando café da manhã. O comercial que mostrava uma felicidade que parecia não ser feita pra gente como eu. Daí minha revolta com o produto.
     Após alguns minutos, a ponderação havia acabado: escolhi a margarina de sempre, que prometia entupir mais minhas artérias. Margarina de gente sozinha, que não tem com o que se preocupar. Estiquei o braço para apanhar um pote da vencedora. Eis que uma voz quebrou o silêncio: “Poderia pegar uma pra mim também?”. Olhei para o lado tentando identificar a dona da voz. Deparei-me com um anjo. Tão linda era ela, que congelei, com o braço esticado. Ela insistiu: “Pode ser dessa que você ia pegar”, disse com um sorriso simpático. Retomei o movimento, apanhei o pote de margarina e entreguei a ela. “Obrigada”, respondeu sorrindo novamente. E permaneceu ao meu lado, olhando para a prateleira.
     Estiquei o braço novamente para pegar um pote para mim. Contudo, meu pensamento me tomou e parei, uma vez mais, com o braço esticado. Imediatamente, me veio à mente tudo o que eu já ouvira falar sobre ‘amor a primeira vista’. Eu, que sempre fui cético com essas coisas, de repente, começava a ver sentido. Aquele sorriso diante de mim, talvez fosse um convite. Ela ainda permanecia ao meu lado. Talvez estivesse esperando que eu tomasse a iniciativa. O encanto que ela causara em mim havia sido diferente. Talvez fosse mesmo amor a primeira vista. Outro indício: ela escolhera a margarina de gente sozinha. Talvez tivesse ela uma vida como a minha. Talvez quisesse também libertar-se da solidão.
     Havia indícios demais. Ela ainda permanecia ao meu lado. Tentava parecer distraída, olhando para a prateleira. Talvez estivesse realmente me esperando. Era preciso arriscar, tomar uma atitude, não podia desperdiçar aquela oportunidade. Que aquele fosse o primeiro dia do resto de nossas vidas, então. Retomei o movimento, mas em direção a outro pote: o da margarina do casal feliz. Chega de margarina de gente sozinha! Nossas vidas iriam mudar. Seríamos felizes, como o casal do comercial. Apanhei o pote e respirei fundo. Voltei-me a ela para dizer algo. Porém, não tive a oportunidade. Abri a boca, mas fui calado por uma voz grave que dizia: “Amor, essa margarina não. Pega aquela outra. Igual a essa que esse cara tem nas mãos.”
     Ela olhou para mim. Em um gesto silencioso, simplesmente entreguei a ela o pote que tinha em minhas mãos e peguei o dela para mim. Em seguida, ela foi embora, levando a margarina do casal feliz, enquanto eu fiquei com a de sempre, de gente sozinha. Não preciso dizer o quão doloso foi, para mim, amá-la e depois perdê-la. Talvez eu fosse feito para a solidão mesmo. Aquele não foi o primeiro amor a dar errado. Na verdade, era apenas mais um exemplar para minha coleção de fracassos. Um exemplar exótico é bem verdade. Mas, que me machucou tanto quanto os outros. Talvez até mais.
     Contudo, era preciso ser forte. Era preciso sair dali, chegar a casa e me isolar do mundo, a fim de me recuperar. Segui então minha Via Crúcis em direção à saída. A cada passo, sentia os pedaços daquele sonho caindo ao chão. Tentava me convencer de que talvez fosse melhor seguir sozinho. Aguardei algum tempo na fila até chegar ao caixa. Cabisbaixo, pus meu pote de margarina e os outros produtos sobre o caixa. Apanhei minha carteira e ia tirar o dinheiro. Mas uma voz doce rompeu o silêncio: “Dinheiro ou cartão, senhor?”, indagou-me.
     Voltei meu olhar na direção em que veio a voz. Deparei-me com um anjo sorridente. Tão linda era ela, que me fez pensar em ‘amor a primeira vista’. Logo eu, que sempre fui cético com relação a isso. Mas, e se aquele sorriso fosse um convite. Quem sabe, uma oportunidade de deixar aquela vida de solidão. Eu não podia perder aquela oportunidade. Puxei a carteira disposto a apostar minhas fichas naquele novo amor. Mas, antes, pus a margarina de gente sozinha de volta na cesta. Dessa vez daria certo, seríamos felizes como o casal do comercial de margarina. É bem verdade, que meu coração ainda sofria pela desilusão de dez minutos atrás. Mas, é como dizem: nada melhor que um novo amor para nos fazer esquecer uma desilusão do passado.          




Fonte imagem: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEji4_Dvh7mmyaE84bQUxx8pPWAR2QLCTQLzZLeQIOholH3imAAlWTVim9Q3y9MVtU31iy1W4ANdYODx1Im-REewN6rap38FSn5TsLUm2KgWBQSkyjWLno79s0bdZ9nYJpHVXVZP3gS6dFM/s400/doriana.jpg

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Observador

     Como costumam dizer, ao chegar, já peguei o bonde andando. Ninguém parou para me ver. Talvez por isso observar tenha sido minha sina. Afinal, quando não se é visto, ver é o que nos resta. Logo que pude, escolhi sentar à janela, só para ver o que o mundo tinha para me mostrar. E foi assim que meu olhar se acostumou a passear pelo mundo enquanto me mantive passageiro da vida. Muito do que sei, aprendi com os olhares. Uma parte naqueles que lancei ao horizonte. Mas, grande parte, também, nos olhares alheios, sempre cheios de intenções, vontades. Tanto vi que, por vezes, me perco em minhas memórias. No entanto, diria que algo me ocorre neste momento.
     Recordo que era cedo quando a mentira se mostrou a mim pela primeira vez. No início, mostrou-se bela, capaz de seduzir facilmente um olhar jovem como o meu. E o fez tão bem. Caí em seus braços como quem busca a redenção. Confesso que, por um instante, fui feliz. Mas, logo fui traído. As palavras que me salvaram se voltaram contra mim. Por fim aprendi, a duras penas, que, nem sempre, devo me render ao que atrai meus olhos. Preferi então encarar a face grave da verdade. Ela não seduz, muito menos faz promessas. Mas jamais te trai com sorrisos dissimulados.
     Sempre estive sozinho. Por isso, foi fácil afeiçoar-me àquela que primeiro correspondeu ao meu olhar. Lá de cima, ela brilhou, igualmente a mim, solitária. Parecia compreender minha dor. Foi assim que me enamorei da lua. Porém, era um amor daqueles difíceis. Dias inteiros eu tinha que esperar para vê-la. E, nos dias em que ela não vinha, conheci a dor que roubou minhas lágrimas. Fui apresentado também à saudade, que veio em silêncio e apertou-me o peito sem dó. Após muito sofrer, por fim, desisti daquele amor impossível. Talvez tenha sido melhor.
     Desde então, resolvi olhar o amor de perto. Esquadrinhá-lo, a fim de abstrair sua essência. Como se isso fosse possível. Levei certo tempo até perceber que minha empreitada era falha desde o início. Mas consegui vislumbrar algumas coisas. Muitos foram os amantes que vi pelo caminho. Alguns deles, isolados nas ilhas do amor a dois. Julgavam que assim estariam seguros, protegidos. Contudo, por vezes eram surpreendidos pelas tormentas da vida, que, não raro, devastavam tudo. Os que sobreviviam, restauravam a ilusão de outrora e seguiam, aguardando a próxima tempestade.
     Mas havia aqueles que diziam não ter nascido para viver em terra. Ou pelo menos se convenciam disso. Não buscavam segurança ou proteção. Diziam-se afeitos à adrenalina das marés. Zombavam dos ‘ilhados’. Preferiam se afogar no mar das possibilidades a se render à monotonia de uma vida a dois. E muitos se afogavam, quando vinham as tormentas. Os que sobreviviam, acabavam por procurar por terra firme. Salvo alguns poucos, que optavam por se arriscar uma vez mais.
     Eu muito já havia visto até então. Contudo, decidi vivenciar o amor uma vez mais. E ao destino coube essa parte. A tarde se despedia, em um daqueles dias em que o Sol faz questão de mostrar-se belo ao se pôr, quando veio a mim o amor. Sentou-se ao meu lado e, com aqueles olhos castanhos, se pôs a olhar pela minha janela. Como quem desejasse adentrar em meu mundo. Quando já havia visto o suficiente, me encontrou encantado. Havia em mim a certeza de que aquela era minha ilha. Porém, quis ela saber se seria a primeira flor a desabrochar em meu coração.
     As palavras vieram, e junto a elas, a lembrança de minha alva amada, que a noite caminha pelo céu. A mentira me pareceu irresistível, mas fechei os olhos para encarar a verdade. Respondi que outra já havia deixado em mim sua marca. Não a vi me abandonar, mas já podia sentir o abraço frio da saudade. Uma primeira lágrima quis se mostrar, mas uma palavra doce a conteve. “A verdade nem sempre é escrita com lágrimas”, sorriu-me. Pegou em minha mão, e me convidou para viver o que há muito eu somente havia visto. E foi assim que dei adeus à vida de observador do mundo. Hoje devoto minha atenção apenas àquele olhar castanho, pois, hoje, ele é meu mundo.

Fonte Imagem: http://blogdokelmer.files.wordpress.com/2010/06/ilha-01a.jpg

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Escritor

     Permita-me adentrar em teu pensar por meio destas palavras. Deixe-me te conduzir pelos mundos que te incito a criar. É o que faço de melhor, diriam alguns. Meu verbo é o pincel que traceja cenários na tela de tua imaginação. Sou o artista, é bem verdade, mas me limito a assinar a obra. É tu, caro leitor, quem determina as cores e as formas que a imagem final terá. Somos ambos livres, embora necessários um ao outro. Atados por esse laço de alvedrio. É verdade, devo confessar, que foi a liberdade quem me engendrou. Na verdade, a ânsia por ela.
     “A vida é uma só.”, eles diziam. Contudo, eu sempre discordei. Sabia que apenas os tolos se deixam limitar. Escolhi viver muitas outras vidas além da minha. Tornei-me então escritor. Com a caneta em mãos, posso ser quem eu quero: há dias em que quero ser herói; às vezes quero ser bandido; por vezes desejo ser os dois. Não existem amarras. O tempo é meu cavalo, a galopar na velocidade que desejo. Posso ser criança hoje; velho amanhã. Minha imaginação é quem dá rumos a tudo.
     As fronteiras do espaço, igualmente, inexistem. Ontem mesmo dei a volta ao mundo. Hoje mais cedo estive no Egito a contemplar as pirâmides. Agora aqui estou, a invadir sua casa, caminhando por sua mente. Talvez jamais tenhas me visto. Mas isso não importa. Ainda que eu usasse minhas amigas palavras para descrever-me, me imaginarias a teu modo. Eis a melhor parte de tudo isso. Posso ter inúmeros rostos. Basta contar com tua imaginação. Ela é nosso trunfo maior.
     Mas, foi outro dia que tudo ganhou outras cores. Enquanto o amor passava por mim, alguém me disse: “Só se ama uma vez na vida”. Como era de se esperar, discordei. Apanhei a caneta e resolvi viver tantos amores quanto pudesse. Mas, amar em prosa não me satisfez. Resolvi então ser poeta, para sorrir e chorar por amores que jamais tive, mas que a mim pertencem. Amores meus, que compartilho com quem ousa ler minhas palavras. Amores que são meus e teus, caro leitor. Amores eternos, tão intensos quanto queiramos que eles o sejam.
     Mas, alguém me indagou: “E a vida que sempre te pertenceu?”. Desta eu não esqueci. Embora, por vezes, nela atue como coadjuvante. Aproveito cada passo, enquanto, por ela, caminho sem pressa. Vejo tantos que correm dizendo para si que a vida é breve. Talvez estejam certos. Contudo, não temo o amanhã que pode não vir. Pois sei que sempre viverei, através de minhas palavras, na tela de tua imaginação, caro leitor. Em cores e formas cada vez mais distintas, mas em um quadro assinado por mim.


Fonte Imagem : https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEilGtllUMUsDlOS72xCXrOSsy1YCIam5TwOc55Q_jtYDFIiq1wlTNZTYCEvNfTJD2huovhY8PeTmfk1nU01dpWGM5Q1ZwIQJTgC2bGpXfM2dTOBAzsElEQhVX0ZNKmDzKmu0PXd6Ht7eNxf/s1600/escritor.jpg