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domingo, 30 de setembro de 2012

Futebol Paixão

     Domingão, e lá estávamos nós, entregues àquelas que são duas das grandes paixões dos brasileiros: boteco e futebol. Éramos seis: Beto, Zezão, Chico, Júnior, Catarro e eu. As garrafas de cerveja sobre a mesa já haviam testemunhado meia dúzia de histórias e agora nos viam concentrados olhando para a televisão presa à parede. Não era qualquer jogo, era um FlaxFlu! Ânimos a flor da pele. Futebol é coisa séria. É paixão! Tem gente que faz de tudo pelo seu time. Em dia de clássico então. Nós mesmos estávamos lá, reunidos no boteco do Seu Manoel, contrariando opinião das esposas, filhos. Tudo pra acompanhar o jogo.
     Seu Manoel, como todo dono de boteco, tinha a eterna mania de limpar o balcão com um pano encardido. O Zezão dizia que era um cacoete. Mesmo porque não importa o quanto ele limpasse, o balcão sempre parecia estar sujo. Atento para a escalação dos times, Seu Manoel soltava piadinhas sobre os nossos jogadores. Ele era vascaíno, logo, odiava tanto o Flamengo quanto o Fluzão. Mas, o importante no momento era provocar. Chamava os atacantes de perna de pau, o técnico de burro. Parecíamos ignorar. Mas só enquanto ele não decidia apostar cervejas pelo resultado. Como éramos os únicos clientes, ele não demorou muito propor a aposta. E nós, claro, aceitamos, já pensando nas cervejas que íamos ganhar.
     Aos vinte minutos do primeiro tempo eu já não tinha unhas. Os dois times tiveram chances de gol, mas perderam. O Catarro já havia xingado o técnico do Fluzão pelo menos três vezes. O Naldo parecia direcionar mais atenção ao juiz: a cada falta, um elogio à mãe do infeliz. O resto de nós, inclusive eu, mantinha a concentração. Vibrávamos a cada drible. Sofríamos a cada passe errado. Aos quarenta uma bola na trave. Respiramos aliviados, afinal, levar gol antes do fim do primeiro tempo ia deixar todo mundo nervoso na hora do intervalo. O juiz apitou e o placar seguia igual.
     Após o revezamento no banheiro do boteco, voltamos à mesa e pedimos mais uma cerveja. Então surgiu à porta um figura magrelo de camisa vermelha. Olhou para nós e gesticulou. Ninguém entendeu nada. Ele se aproximou tímido, e fez mais alguns sinais com as mãos. Continuávamos sem compreender, até que o Seu Manuel resolveu o mistério: “Vocês tão bêbados demais para perceberem que ele é mudo?!”. Olhamos novamente para o visitante e ele seguiu com os gestos. Pelo que eu entendi, ele estava pedindo dinheiro.
     Mas, ninguém tinha nada nos bolsos. Era uma espécie de tradição. Depois de sucessivos calotes, o Seu Manoel não vendia fiado. Como éramos clientes fiéis, ele acertou que, em dias de jogo, nós deixaríamos determinada quantia com ele e poderíamos beber a vontade. Enquanto nossa cota não acabasse, é claro. No entanto, não deixaríamos nosso amigo ir embora assim. O Catarro puxou uma cadeira e ofereceu um copo de cerveja. O segundo tempo ia começar. O mudo aceitou. Sentou-se e começou a assistir o segundo tempo conosco.
     O jogo seguiu tenso. Passes errados, substituições equivocadas. O tempo corria e nada de gol do Fluzão. Seu Manoel se divertia com a nossa agonia. E, só para nos torturar, falava das cervejas que ia ganhar se o Flamengo por acaso fizesse um gol. Quanto ao nosso sétimo homem, ele permanecia calado, por razões obvias. Embora não vibrasse conosco nos bons lances, mantinha o olhar na tela. O Chico cuidava para que o copo dele não ficasse vazio. Depois de um tempo, percebi que a intenção dele era embebedar o coitado do mudo. E o pior é que ele estava conseguindo.
     Trinta minutos de jogo e todo mundo já bebia a cerveja como se fosse água. O nervosismo dava sede. E o mudo nos acompanhava. Já havia se enturmado. Sorria das nossas piadas como se as entendesse. Ninguém mais estava sóbrio. Aos quarenta já estava todo mundo conformado com o empate. Não íamos ganhar as cervejas que tínhamos apostado com Seu Manuel. Mas, pelo menos não tínhamos perdido a aposta. O mudo, a essas alturas, já estava pesado, quase cochilando na cadeira.
     Quarenta e cinco do segundo tempo, o juiz deu três minutos de acréscimo. Nós já parecíamos indiferentes ao jogo. Os jogadores, cansados, já não corriam tanto. Não sairia mais gol ali, eles estavam em campo só pra cumprir tabela. Seu Manoel pediu que acordássemos o mudo. Assim que o jogo acabasse ele fecharia o bar e, nós o havíamos convidado para beber, nós deveríamos acordá-lo e levá-lo embora. O Catarro pediu nossa atenção porque ia fazer uma brincadeira com o mudo. Tiramos os olhos da televisão por alguns segundos, e nos voltamos ao coitado.
     Mas ele abriu os olhos de leve, antes que o Catarro pudesse fazer alguma coisa. Olhou em direção à televisão e, com um sobressalto da cadeira, soltou o grito forte: “Goooooooooooooooool”. Assustados, nossa primeira reação foi olhar para a televisão. Na tela, o replay denunciava: gol do Flamengo aos quarenta e sete. Trocamos olhares por um segundo e não sabíamos o que era pior: ele não ser mudo, ou ele ser flamenguista.
     O Júnior passou a mão em uma garrafa para ir pra cima do mudo. Mas, quando olhamos para o lado, só estava a cadeira. Saímos à porta do bar e o avistamos dobrando no fim da rua. Confesso que até hoje nunca vi ninguém correr tão rápido. Depois disso, só nos restou beber mais uma e pendurar as outras que havíamos perdido na aposta. Sempre que acontece um clássico, eu conto o episódio desse FlaxFlu. É, como eu havia dito no início, futebol é paixão, dessas que faz até mudo gritar quando sai um gol do seu time.



fonte imagem: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEizHkpn8YULhTmmvYxdpxcEgp0Y1T0js1b3nbyv0U35KmbDWXQrsCgP1WKdDMQzSbyqDov5eHIdWSH6N-u4igu6h_St4mI5TeJIzC88vXSq-uOTSSYoQxJ3jNV2OwpTEygDDYSSuqNlQOI_/s320/Fla-Flu+%25282%2529.jpg

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