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quinta-feira, 30 de agosto de 2012

A ária e os conselhos

     Passeava o olhar pelos campos da juventude quando me deixei seduzir por certa melodia deixada ao vento. De doces tons era composta. Provinha do mais belo instrumento. O primeiro a atrair minha atenção. Em face ao enlevo evidente, recordei o que, certa vez, disse-me meu pai: “A infância de ti se despedirá em breve. O encanto das melodias haverá de te atrair. Este só é perceptível por ouvidos de homem. Mas, tenha cuidado, às vezes, belos sons enganam”. Quisera eu tê-lo ouvido. Entretanto, ignorei o alerta, entreguei-me ao torpor daquela melodia. Tudo era perfeito então, e eu poderia permanecer naquele sonho por toda a vida. Porém, repentinamente, a música parou. E eu fiquei a dançar no silêncio. Quando me dei conta, estava só. Aquele instrumento já era tocado por outro.

     Despertei para o mundo surdo de antes. As sensações eram vazias. O silêncio de outrora, agora me machucava. Diante de minha tristeza, meu pai deu-me o alento: "A primeira sempre será eterna, pois, necessária é, para que nossos ouvidos despertem para todos os sons que passeiam pelo ar. Conhecerás muitos instrumentos, de melodias variadas. O mundo lhe aguarda. Descubra a multiplicidade dos sons, apaixone-se por eles. E, quando, dentre tantos, um te agradar de um modo diferente, venha até mim". Palavras sábias foram aquelas. Relutei, é bem verdade, mas acabei por aceitá-las.

     Segui, com passos firmes, atento a tudo que minha audição percebia. Tantas eram as melodias que eu reconhecia agora. Solitárias, melancólicas, alegres, apaixonadas. Tentavam-me, todas, a conhecer sua fonte de origem, entregar-me a elas. E, como não havia impedimentos, segui o conselho de meu pai. Pousei em meus braços muitos instrumentos e deles extrai músicas peculiares. Alguns eram doces, e por vezes me roubaram suspiros. Outros, mais enérgicos, exigiam meu fôlego para revelar o ápice de sua sonoridade. Havia, ainda, aqueles que a solidão fizera desafinar, mas que ao primeiro dedilhar recordavam seu timbre. Por vezes, me deparei com instrumentos parecidos, mas cujas melodias eram distintas. A forma não se sobrepõe à essência, afinal.

     Corri com os anos e conheci tantos instrumentos, que seria difícil me expressar em números. Entreguei-me a todos, assim como a mim também se entregaram. Descobri que, não importa o quanto o tempo castigue o instrumento, com um pouco de carinho, ele sempre revela a beleza de sua melodia. Basta apenas saber o modo exato de tocá-lo. E eu havia aprendido como fazê-lo. Contudo, embora muitos houvessem atraído minha atenção, nenhum conseguia mantê-la por muito tempo. As harmonias logo se mostravam obvias, previsíveis. Era então o momento de dizer adeus e seguir minha jornada. Eis a parte difícil: há sempre um apego entre o instrumento e aquele que o toca. Sempre que partia, deixava para trás uma última nota. Algumas de tristeza, outras de revolta. Mas, todas com um sentimento em comum: saudade.

     No entanto, ontem, veio até mim uma ária perfeita. Não era tão distinta das demais, mas me atraiu. Quis conhecer o instrumento de onde provinha. Ao chegar até ele, descobri que era especial. Quando o tomei em meus braços e ouvi um simples acorde tive vontade de render-me a seus sons. As palavras que meu pai um dia dissera fizeram sentido. Fui então à busca daquilo que ele há muito guardava. Percebendo o brilho em meus olhos, ele sorriu. Disse-me satisfeito:

"Pelo visto, seguiu meu conselho: conheceu muitos instrumentos e enfim encontrou aquele que eu havia mencionado. Em teus braços os tivesse e aprendestes a tocá-los. Muito já sabes, mas ainda resta um último conselho. É chegado o momento de se aperfeiçoar. Este que agora te toma à paixão é único. Ouso dizer que foi feito para ti. Deves agora dedicar-te a conhecê-lo a fundo, descobrir o que há por trás de cada nota, apreender a essência que o rege. Ame o seu instrumento, e ele também te amará, e te revelará a verdadeira pureza de seus sons. Mas não esqueça, ainda que o conheças tanto quanto a ti, ele jamais te pertencerá. A liberdade é o que deve lhes unir".

     Depois disso, nada mais disse. Saiu sorrindo, com aquele ar de quem cumpriu seu dever. Eu saí de casa. Enquanto atravessava a rua, ouvi uma linda melodia vinda de dentro da casa de meu pai. Era bela como nenhuma outra. Revelava o quão íntimo meu pai era de seu instrumento. Enfim eu compreendi o que ele quis me dizer. Era aquele o amor do qual ele falara. Uma vez mais, segui com passos firmes, disposto a seguir o conselho que me foi dado. Mas, dessa vez, rumo à ária do amor.

Um comentário:

  1. Meu caro, não sei ao certo se vc já compôs algum conto, tenho curiosidade de ler um vindo de ti. Abraços.

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