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quinta-feira, 30 de maio de 2013

Verdades

"E a verdade então será de barro, e poderosos serão os oleiros", bradou o bêbado. Pouco depois tomou o derradeiro gole de cachaça, que de tão longo não deixou o ar chegar aos pulmões. Afogou-se na fonte de prazer, o infeliz. No entanto, disseram que o encontro da cabeça com a calçada fora o responsável pelo falecer. Eu tinha nove anos, não sabia nem o que era a vida, que dirá a morte. Lembro que sol estava quente e que minha mãe me mandara comprar algo na mercearia. Sobretudo, lembro das palavras do bêbado. Profeta maldito, iluminado nas últimas palavras. Nos derradeiros segundos, tivera sua epifania. Acho que talvez as dissera para mim. Não para quem eu era, mas para quem sou nestes quarenta e poucos anos miseráveis.

Sobre o papel medíocre, marchetado em preto, meu nome jazia, responsabilizando-me pela falácia. De repente o café cotidiano ficou amargo enquanto as palavras do profeta morimbundo me vinham à mente. Serena pediu-me o jornal. Mastigou, silenciosa, as palavras, enquanto o pão com manteiga esperava sobre a mesa. Ao final da leitura já não tinha fome. Pensativa, ficou a olhar a fumaça que fugia da minha xícara. Esperei pelo golpe, como o gladiador que não deseja a luta. Ela nada disse. Engoliu a revolta, mesmo sabendo que ficaria empachada. Levantou da mesa, beijou-me o rosto e saiu. Ficamos eu e o pão, sem as esperadas reações. Como ele não quisesse conversa, parti.

Oito horas da manhã e o trânsito era o purgatório. Nem mesmo o Vivaldi aliviava. Não olhava os retrovisores, temendo encarar a mim mesmo. O som das buzinas batia ao vidro. Ou seria mais um pedinte? Não vi, não quis ver. Temia o olhar deles também. Quis ter asas para fugir. Meu possante carro avançava, era agora a maior das futilidades. Eu estava atrasado para um importante compromisso indesejável. Enfrentaria a corriola de cabeça erguida. Não sabia como, mas o faria. O sol quis se esconder, por um instante cri no milagre de uma chuva que me levasse de volta para casa. Era só uma nuvem, que sequer lacrimejou. Não haveria álibi para a fuga.

Ainda no estacionamento, olhares me eram disparados. Minha doença estava estampada em minha testa. Até ontem intocável eu era. Hoje o mundo parecia me julgar. Meu erro já era do conhecimento de todos. Mas não haveria fogueira para este herege. Não em praça pública. Por isso eles tentavam me queimar aos poucos, em seu não tão silencioso cochicho. Atravessei a porta de entrada e senti o ar caindo sobre meus ombros. Nem mesmo o sorriso diário da secretária eu ganhei. Limitou-se a apontar o caminho que eu já conhecia. A familiaridade que eu julgava ter naquele ambiente, definitivamente inexistia agora. Eu era corpo estranho, deveria ser eliminado. A demissão era o mínimo. Mas eu julgava ser essa uma hipótese tão boa, que sequer a considerava.

No elevador, a coragem quis nascer. Encarei a todos com o meu 'bom dia'. Quando só, enfrentei a mim no espelho, pela primeira vez no dia. A escalada não tinha fim. Uma pequena tela mostrava o número dos andares, contava os segundos de minha agonia. Mesmo parado, sentia meu corpo doer. Ao final, a paisagem não compensaria o esforço. Lá no alto, as portas se abririam no inferno, e nem minhas preces poderiam me livrar. Mas era preciso enfrentar o monstro que ousei despertar. A coragem menina eu já tinha. Só faltavam-me as armas. Palavras? Acaso poderia eu entregar minha salvação nas mãos de meus algozes?

Sentei à mesa e todos os olhares se voltaram a mim. Atiraram sobre a mesa a edição do jornal. Indagaram os motivos. Em poucos minutos, eu era  metralhado por afirmações to tipo:"Você é pago para moldar fatos!"; "A verdade é como aquelas mulheres que precisam de maquiagem para atrair olhares!"; "A diferença entre heróis e bandidos está em nossas mãos". Em cerca de cinco minutos, muito fora dito na tentativa de me convencer de meu pecado. Mas o golpe final veio das mãos do grão-inquisidor, o proprietário do jornal: "Meu caro, hoje o mundo está alicerçado em fatos manipulados. Se concordamos que algo aconteceu, não há necessidade de provas para tal. Compreendo sua boa intenção, mas deste ponto não há mais volta. Revelações poderiam comprometer a estrutura. No entanto, admiro sua coragem, o último a tentar algo parecido feneceu pregado a uma cruz. Belo exemplo".

Convencido de minha chaga, deixei a sala surpreso por dela sair vivo. A frase do embriagado ressoou novamente em minha mente. Uma vez mais ao elevador, enquanto lamentava a morte prematura da coragem outrora engendrada, veio a mim, então, a epifania de uma vida: se temos o poder da verdade, somos deuses. Por um instante, maravilhei-me com a idéia. Segundos depois, ela passou a me assombrar. Afinal, meu crime impresso tornara-me um traidor. Ciente de já não ser um deus, um rosto de repente surgiu na tela que outrora mostrava os números. Viera ele corroborar minha condição de mortal. Era ele, o Pilatos, a selar meu destino. "Não se preocupe, será apenas um acidente, todos estão sujeitos a algo assim". Antes que pudesse digerir as palavras, tudo se apagou. Meus pés deixaram o chão e tive a certeza de que o elevador despencava. Nos poucos segundos restantes, recordei aquele dia, na infância. Diferentemente do bêbado, eu não teria ninguém para ouvir minha profecia derradeira. Na verdade, sequer formulei alguma.

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