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sábado, 19 de maio de 2012

Delírio

     Acabo de encontrá-la em minha mente. Enfim, venci a distância com as asas de meu trôpego pensar. Eis o mais forte meio de amenizar o temor que me invade neste exato momento. É bem verdade que objetivo ignorar - esquecer – a carnificina ao redor. Mas, é impossível ludibriar a todos os sentidos. É gélido o leito em que me encontro, forrado pela terra embebida em sangue. Partilho-o, para minha dor, com aqueles com os quais outrora sorri. É a ausência do sorriso em suas faces que me faz fechar os olhos para o horror que me toma. Mas, o odor de sangue, suor e medo é um lembrete constante a me atormentar. Por fim, prendo a respiração. Tentativa de um escapismo desesperado. Contudo, a audição mostra-se traiçoeira. Ainda ouço estouro dos tiros, as balas, violentas, que laceram corpos e o ar.
     Apegar-me ao pensamento é tudo o que me resta. Peço para ir para longe. Viajo delirante por minhas memórias. É bem verdade que o temor me acompanha. Porém, consigo chegar até o Éden de minhas recordações. Posso vê-la sorrindo enquanto acaricia meu rosto. Olhares brilhantes são os nossos. Alvos são os lençóis, que invejam a cor morena de minha Eva. Cenário tão maravilhoso é este, que talvez só deva existir em meu imaginário. Não culparia minha mente por vacilar agora. Pouco importa. Esta fantasia é o que me mantém vivo. O que me impede de ceder ao pânico e expor ao ‘inimigo’ que dentre o jardim de cadáveres ainda resta uma vida a ser ceifada.
     Milhares de sonhos agora se decompõem a minha volta. Esperanças dilaceradas impiedosamente por uma causa que não lhes pertence. Tantas eram as promessas que os trouxeram até aqui. Tantas eram as promessas que os fariam regressar. Perderam-se todas afinal. Os corpos, infelizmente, foram mais frágeis que os sonhos. O aço que arranha o vento não tem qualquer pudor, atravessa vidas como fossem meros obstáculos. Triste é pensar que além do rastro de sangue, há o das lágrimas daqueles corações otimistas que optaram por ignorar o óbvio e são surpreendidos pela perda.
     Tantas são as divagações que tentam atrair minha imaginação neste momento. Mas, prefiro permanecer preso a ela. Quase posso senti-la afagando meus cabelos. Terei eu esta felicidade uma vez mais? Lembro-me da última carta. O perfume dela no papel. As letras desenhadas. As frases de amor bem elaboradas. É preciso sobreviver. Nem que seja para vê-la uma única vez. Logo há de amanhecer. Ao cessar dos tiros poderei manifestar a vida que ainda tenho. Fugir. Esquecer esta paisagem horrenda.
     Repentinamente fez-se o silêncio. Minhas preces devem ter sido ouvidas. Mais alguns instantes de espera e poderei me apartar deste horror que me congela a alma. O Sol haverá de lançar seus raios e eu poderei voltar à vida. Estes são meus pensamentos. Contudo, ouço passos que se aproximam. Esquecia-me do principal detalhe: sempre há um soldado que é o último a deixar o campo de batalha; a ele cabe a árdua missão de por fim às vidas agonizantes que persistem. É ele quem está agora diante de mim. Prendo a respiração. Porém, o frio e o medo me fazem tremer. É o fim: a baioneta ensangüentada já atravessou minha garganta.
     Abro os olhos para encarar a face de meu carrasco. O horror se apodera de mim uma vez mais. Os olhos diante de mim são os dela. O sangue escorre por meus lábios e mancha os lençóis alvos. Ela está a afagar meus cabelos. Há um sorriso sádico em sua face. Há um punhal ensangüentado em suas mãos. Que sonho horrendo é este que atormenta meus últimos suspiros? Será um derradeiro delírio? Serei eu mais um elemento sem vida a compor aquela paisagem funesta? Ou será que desde o início sou parte dela e estava a ser ludibriado por meu pensar vacilante? Não há mais tempo: afoguei-me em meu próprio sangue.  




Fonte imagem: http://mariovenditti.blog.uol.com.br/images/campodebatalha.jpg

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