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domingo, 7 de agosto de 2011

Segunda Chance

    Deu um passo a frente, então ouviu o barulho das grades se fechando atrás de si. Era a última vez que escutaria tal som. Começou a caminhar. Ao seu lado, dois homens armados com fuzis o acompanhavam até seu destino. Levaram-no a uma sala onde pôde enfim reaver seus pertences, dos quais se apartara há exatos dez anos. Nada de muito luxo: uma camisa branca, amarelada pelo tempo; uma calça jeans; um par de sapatos; um maço contendo cigarros tão amarelados quando a camisa; um isqueiro; algumas moedas.
      Ele vestiu as velhas roupas e foi conduzido à saída. A poucos passos do portão principal, parou e olhou para trás. A aparência do lugar mudara naqueles dez anos, mas ainda assim era deveras medonha. De onde estava ele possuía uma visão privilegiada. Tantos lugares. A memória tentou trazer-lhe à mente as más lembranças, mas ele a conteve. Esqueceria aquele lugar, e tudo o que vivenciou enquanto lá permanecera. Seguiu com seu passo firme, mas antes de cruzar o grande portão que o separava da vida nova, olhou para trás uma vez mais. Diria adeus? Não, apenas guardaria aquela imagem.
                                   
      Com o pé direito ele pisou fora da penitenciária. Respirou fundo, olhou as nuvens, estava livre enfim. Iniciaria uma nova vida, mesmo porque a antiga se perdera há muito. Seu crime? Render-se ao desejo infame e desenfreado que sentira pela filha do chefe durante uma festa. Tinha vinte e cinco anos à época. Era um jantar de confraternização com todos os membros da empresa. A garota chamou-lhe a atenção desde o primeiro momento. Seria algo normal, se ela não tivesse apenas oito anos de idade.
      Imaginando que ninguém perceberia, ele desapareceu com a criança enquanto todos estavam distraídos. Porém, bastaram alguns minutos até que um convidado o encontrasse violentando a criança em um dos quartos. A revolta imediata fez com que o sentimento de justiça viesse à tona, aquele instinto bárbaro que se apodera dos homens diante de algo tão execrável. Espancar-no-iam até a morte. Porém, alguém chamou a polícia, que chegou a tempo de levar-lo quase sem vida.
      Por sorte ou destino, como queira, ele sobreviveu. Condenado a dez anos, foi transferido à maior casa de detenção do estado. Foram anos de abusos- de todos os tipos. Diariamente violentado, ele sofria, mas não ousava manifestar-se. Arrependia-se todas as noites, quando o sono lhe faltava. Contava os dias, na expectativa de poder novamente viver. Queria guiar o próprio destino uma vez mais. Jamais perdera a fé. Mesmo sendo o preso mais odiado, não cultivava rancor dentro de si. Tinha plena consciência que era responsável por tudo aquilo.
      Sentir-se livre era um sonho realizado. Uma nova chance, não a perderia. Recomeçaria a vida com humildade.  “Todos merecem uma segunda chance.”, dizia para si. A estrada em frente ao presídio foi seu primeiro desafio. Caminhou bons vinte quilômetros até chegar à cidade mais próxima. Entretanto, o povo de lá não era muito hospitaleiro. Talvez porque era ponto de passagem de todos os ex-presidiários. Não sendo bem recebido, ele rumou para a capital. Venceu uma partida de sinuca em um bar de beira de estrada e ganhou como prêmio uma carona.
      Ao chegar à cidade, surpreendeu-se com as mudanças. Era uma cidade diferente, maior. Em um bairro periférico ele conseguiu um emprego: seria garçom de um restaurante. Embora estive qualificado para algo bem melhor, considerava que o homem que um dia foi havia morrido levando consigo seus títulos e defeitos. Era um novo homem. Em pouco tempo ganhou a confiança dos patrões, que cederam a ele um quarto que ficava atrás do estabelecimento. Tornou-se benquisto pela vizinhança. A nova vida com a qual sonhara era real. O passado já não o atormentava, enfim era feliz.
      Eis que uma noite um jovem casal adentra o estabelecimento. Com a cordialidade costumeira, ele os atende. Eram jovens, comemoravam o aniversário de namoro. Pareciam felizes, mas algo o intrigara: a moça, furtivamente, o encarava. Constrangido, ele pediu que outro garçom atendesse a mesa e saiu para tomar um ar. Observava as estrelas quando ela apareceu à porta dos fundos do restaurante. Ele se surpreendeu com a ousadia. Decerto ela dissera que ia ao banheiro e mudou o rumo, afinal, a porta em que estava era logo ao lado da do banheiro feminino.
      A moça veio sem desviar o olhar dos olhos dele. Esboçou um sorriso e perguntou-lhe o nome. Desconcertado, ele respondeu. Jamais imaginara uma situação como aquela. Antes que pudesse dizer mais alguma coisa, a moça o beijou. Empurrou-o contra o muro e tentou abrir sua camisa. Ele ia dizer algo, mas ela disse: “Vamos, tempos pouco tempo.”. Embora confuso aquilo tudo o excitava. Na ânsia de saciar a vontade da moça, bem como a própria, ele arrastou-a para o quarto dos fundos.
      Sequer acenderam as luzes, ela o empurrou contra cama. De onde estava ele podia ver os contornos daquele corpo jovial. Ela tirou a blusa e o provocou. Voraz, ele avançou para beijar-lhe os seios. Porém, antes que seus lábios pudessem sentir o calor da bela jovem, ele sentiu algo frio perfurar-lhe a garganta. Caiu de joelhos diante dela com a faca presa em seu pescoço, agora, ensangüentado. Tentou falar, mas o sangue o sufocava aos poucos. Queria olhar para ela, mas a escuridão não o permitia.
      A jovem afastou-se dele e acendeu as luzes. Apanhou a blusa ao chão e vestiu-a. Olhou para o infeliz que agonizava e sorriu. Ele lançou-lhe um olhar de indagação. Ela se sentiu obrigada a responder:
      “Não se faça de desentendido. Pensou que eu esqueceria o mal que me fez? Durante toda a minha adolescência sonhei com esse momento. Só não imaginei que seria tão fácil. Sim, eu sabia que você estava trabalhando aqui. Foi tudo planejado. Ou achas que eu viria a uma espelunca dessas para comemorar meu aniversário de namoro?”
      Enquanto ouvia aquelas palavras, ele sentia seus membros adormecendo. Estava morrendo, mas ainda teve tempo de olhar aquele rosto novamente: a criança que abusara havia crescido e estava cobrando-lhe o preço pelo mal que há muito fizera. Antes de dar seu último suspiro, ela ajoelhou-se diante dele com um pano em mãos. Passou-o pelo cabo da pequena faca que, por sinal, pertencia ao restaurante. Queria apagar possíveis digitais. Este movimento acabou por enterrar ainda mais a faca sufocando-o. Ele tentou puxar a faca, mas já não tinha forças. Ela o encarou novamente antes de ir embora, então disse:
      “A ferida que você abriu jamais cicatrizou. Nunca escapei das lembranças daquele dia. Roubastes minha vida e achou que poderia pagar por isso. Você pagou sua dívida com a justiça, mas não comigo. Todos merecem uma segunda chance, menos você.”
      Após dizer tais palavras, ela saiu rapidamente, mas teve o cuidado de fechar a porta. Sentou-se à mesa com o namorado, que sequer imaginava o que ela fizera naqueles dez minutos de ausência. Jantaram e em seguida foram embora. Os outros garçons notaram a ausência do companheiro, mas só o encontraram horas depois. As mãos sujas de sangue e as digitais dele na faca sugeriram a hipótese de suicídio. Hipótese que foi confirmada assim que a polícia levantou a ficha do moribundo. “Ele era ex-presidiário, abusou de uma criança, não conseguiu conviver com a culpa.”, disseram. 


Um comentário:

  1. Faca, sangue, morte... Fazia tempo que não lia um texto assim, tão... teu! xD

    Como sempre, mais um puta texto, irmão. Sem mais.

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