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quinta-feira, 2 de maio de 2013

O viúvo


Foi em uma manhã de quarta feira, ao despertar, que o Jair notou que algo não estava certo. Levantara antes de Dalva, pela primeira vez em dez anos de casamento. Estranhou, afinal, ela sempre aguardava ao lado da cama até que ele acordasse. Com um jeito todo próprio, lhe desejava seu “bom dia”, sempre com frases doces, do tipo: “Bora! Levanta e vai trabalhar!”. Contudo, agora quem estava ao lado da cama era o Jair, olhando-a com certo espanto. Percebendo-a quieta demais, aproximou-se. Dalva parecia não respirar. Ao encostar o ouvido sobre o colo gélido, Jair arrepiou-se com o silêncio.

O que se seguiu foram horas de telefonemas e todos aqueles procedimentos que sucedem o óbito. O Jair foi o responsável por tudo. Desde a escolha do caixão, até à feitura do café, que foi servido no velório. Esta última tarefa em nada lhe era estranha, já que Dalva o obrigava a fazer café todos os dias. Todos os que provaram o café elogiaram a habilidade do viúvo. Acerca deste, indagava-se também sobre como seria o futuro sem a esposa. Um casamento longo como aquele sendo interrompido por uma fatalidade, certamente a vida não seria mais a mesma. Jair bem sabia.

O funeral foi na quinta-feira, pela manhã. Todos estavam admirados com a força mostrada por Jair. O semblante sério, inabalável, escondia a dor que por dentro o consumia. Pelo menos esse era o comentário que se disseminava entre os presentes. Alguns ofereciam seu ombro amigo, caso o viúvo desejasse desabafar. Cordialmente, o Jair agradecia, e dizia estar bem, apesar de tudo. Arrisco dizer que a comiseração em relação a ele, era bem maior que o pesar pela defunta. Não fossem as lágrimas derramadas pelos parentes, poder-se-ia dizer que a morta era mera coadjuvante.

Finda a cerimônia, as pessoas foram saindo, até que restasse apenas o Jair. Quando se viu só, ele enfim desabafou. Cuspiu no túmulo e se pôs a amaldiçoar a nova hóspede do cemitério. Alguém que por ali passasse, teria escutado coisas como:

- “Já vai tarde! Agora sim eu volto a viver. Maldito foi o dia em que eu botei aquela aliança no teu dedo e disse “sim” para o padre. Mas agora eu estou livre. Acabou o tormento. Lembra-se daquelas panelas que me forçavas a arear? Vou usar todas como urinol! E tua coleção de bibelôs de porcelana? Vou me divertir quebrando de um a um! Mas não agora. Agora eu vou aproveitar um pouco. Fica aí, que eu vou curtir. E fica tranquila que todos os anos, no Dia de Finados, eu venho aqui para cuspir na tua sepultura de novo!”.

E o Jair saiu pelas ruas, arrotando liberdade. Parou no primeiro bar que avistou e pediu uma dose da bebida mais forte. Após essa primeira, outras tantas vieram. E até o anoitecer o Jair já havia feito vários amigos de copo. As “moças” o chamavam de Jairzinho, e a vida era um carnaval. E entre bebidas, sexo e farra o viúvo desapareceu durante todo o fim de semana. A dieta alcoólica provocou um estado de embriaguez constante, de modo que a sobriedade somente retornou na manhã de quarta-feira.


A julgar pela ressaca, Jair jurava haver despertado em plena quarta-feira de cinzas. Poderia até não o ser para as demais pessoas, mas, para ele, sim. Embora deitado, sentia a cabeça girar. Estava em um quarto desconhecido, deitado em uma cama com pelo menos cinco outras pessoas. Transtornado das ideias, só conseguiu se situar quando alguém perguntou que dia era aquele, e ele se ouviu responder: “quarta-feira”. Imediatamente, lembrou-se que completava uma semana da morte de Dalva. Se não estivesse enganado, a missa de sétimo dia seria naquela manhã.

Em um sobressalto, pôs-se de pé, incomodando os demais, que ainda dormiam. Percebendo-se apenas com a roupa de baixo, tratou de procurar suas roupas dentre as tantas jogadas ao chão. Juntou algumas peças conhecidas, outras nem tanto, e vestiu-se. Saiu à rua apressado, passando a mão pelos cabelos, pondo a camisa para dentro das calças. Sequer sabia onde estava. Mas, era preciso chegar à missa a tempo. Apanhou o primeiro ônibus que passou e seguiu.

Após uma hora rodando pela cidade, conseguiu chegar à igreja. Quando entrou, o Padre já estava nos ritos finais. Após a bênção, este pediu que algum querido da homenageada viesse ao altar para proferir algumas palavras. Imediatamente, todos os olhares se voltaram para o Jair, que, sentado em um banco ao fundo, lutava contra a dor de cabeça e a náusea. Percebendo o silêncio, o viúvo entendeu a mensagem. Pôs a expressão grave no rosto e se encaminhou ao altar, tentando não cambalear.

Já diante do microfone, olhou para todos os presentes e tentou pensar em algo para dizer. Embora desejasse amaldiçoar uma vez mais a Dalva e expor para todos a tirana que era fora naqueles dez anos de casamento, porém sabia que seria julgado. Por isso, procurava palavras melhores. Mas raciocinar era difícil. A farra fora intensa, a ressaca o era ainda mais. Não suportando o peso da cabeça, apoiou-a nas mãos e ficou imóvel por alguns minutos. Arrisco dizer que nesse instante Jair tirou um breve cochilo.

As pessoas presentes, no entanto, interpretaram a situação de modo diverso. Comentavam a infelicidade do pobre viúvo. Cochichavam entre si coisas como:

- “Pobre Jair, olha como ele tá acabado. Eu sabia que ele estava se fazendo de forte. Aposto que após o enterro ele desabou.”.

- “Ele amava tanto a Dalva, não vai suportar viver sem ela. Olha o estado dele, e isso porque não faz nem uma semana que a ela faleceu.”.

E o Jair, que a estas alturas já havia sido gentilmente retirado do altar pelos coroinhas, pensava apenas em chegar a casa para se recuperar, cumprir as promessas que fizera a Dalva no cemitério para depois cair na gandaia novamente.


3 comentários:

  1. Muito bom o conto. Sempre tive afinidade com estórias à la Nelson Rodrigues e Lygia Fagundes, autores que com certeza tiveste contato pra escrever esses textos.
    Velórios é um dos eventos sociais mais legais de se descrever, senti falta disso. Mas nao deixa o texto menos prazeroso. Queria ter a coragem pra postar meus textos em um blog também.
    Parabéns, cara!

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  2. HAHAHA muito firme. Mas diz a verdade o nome dele é "Dejair que é facinho de confundir com João do caminhão..." e por isso toda essa revolta com a Dalva. ushsauass

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  3. O ressurgimento da prosa Helênica
    =]

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