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quinta-feira, 11 de abril de 2013

O espetáculo

Apoiou-se no pé direito para subir no palco, ritual indispensável, segundo sua superstição. Por trás das cortinas, sentiu o conhecido frio na barriga antes de entrar. Respirou fundo, trazendo para si ar e coragem. As alvas cortinas se abriram e, com um sorriso no rosto, ele surgiu. A roupa colorida de mangas bufantes, puída em alguns pontos, a maquiagem exagerada, os enormes sapatos e o nariz vermelho apresentaram à platéia o Palhaço Paçoca. Se a memória não lhe fosse traiçoeira, aquela era a sua milésima apresentação, era preciso que o show fosse inesquecível a todos. Ele certamente capricharia.

Lançou o olhar à platéia, em busca de um rosto mais amigável, com o qual pudesse fazer seus gracejos. Frustrou-se, porém, ao ver que pouca atenção devotavam ao palco. Com o olhar atento e o dedos inquietos, as crianças se concentravam em seus celulares, como se o palco estivesse vazio. Mas o palhaço não se abateu. Aquela não era a primeira vez que precisaria conquistar os olhos e ouvidos da platéia. Experiente, buscou nos arquivos da mente o melhor de suas piadas, carregando nos trejeitos e distorcendo o timbre da voz.

Esforço vão, concluiu após alguns minutos. Pela primeira vez, em trinta anos de carreira, pareceu que não haveria sorrisos. Observou mais atentamente. As crianças eram diferentes daquelas que vira em outros tempos: meninas com maquiagens e adornos, como se mulheres fossem; meninos de olhares maliciosos, que pareciam ter deixado a infância pelo caminho. O silêncio no ambiente constrangia, torturava o pobre palhaço. Lembrou-se, porém, que certa vez aprendera um truque de mágica com um amigo. Pensou em usá-lo, seria infalível.

Pediu então a ajuda de um voluntário da platéia. Ninguém levantou a mão. Ele insistiu, convidando em tom de quase súplica. As crianças permaneceram cabisbaixas, imóveis, a não ser pelas mãos, entregues aos gadgets. Imaginou que talvez elas fizessem, entre si, críticas silenciosas ao show. Era preciso reverter a situação. Aquela apresentação deveria ser inesquecível. Caminhou até a platéia e tentou se aproximar de alguém. Mas foi surpreendido por um copo atirado de uma das cadeiras de trás. Este o acertou em cheio, espalhando em seu rosto um líquido qualquer, que borrou-lhe a maquiagem. A platéia enfim sorrira. Ao fundo alguém gritou, "Ei, você é muito ruim. Se mata!", e todos se desfizeram em gargalhadas.

Indignado, o palhaço pediu um intervalo e foi para trás das cortinas tentar recompor a maquiagem e a auto-estima. Sentou-se diante do espelho, e pôde ver, entre a pintura borrada, uma ruga no canto de seus olhos. O tempo havia passado, estava velho. Talvez velho demais para seguir com aquilo. Lembrou-se do homem por trás da maquiagem, que sempre viveu à sombra do personagem. Era o Palhaço Paçoca há tanto tempo, que sequer recordava desse homem que sofreu os efeitos do tempo. Àquela altura da vida, tinha apenas o palco. Família, amigos, tudo sacrificou em prol da paixão pelo ofício. O ar jovial do palhaço em nada se parecia com este senhor sentado em frente ao espelho.

À mente, veio-lhe um conselho recebido há muitos anos. Um amigo de profissão o dissera: "Cedo ou tarde não haveria mais lugar para o nosso ofício. Será preciso se adaptar às mudanças do tempo". Esta última parte fixou-se em seu pensamento. De fato, era preciso renovar-se. Os tempos eram outros, a piada de 30 anos atrás certamente não funcionaria. Há tempos os show já não faziam sucesso, a quem ele queria enganar? Se queria salvar aquela apresentação, era preciso voltar ao palco e fazer aquilo que o público esperava. Riram-se de sua humilhação, aquela era a chave.

Paçoca então refez a pintura do rosto como pôde. Já não se importava tanto com ela. O palhaço já sabia exatamente o que devia fazer. Rumou ao palco e atravessou as cortinas. A platéia permanecera como antes, exceto por alguns olhares que, surpresos, eram direcionados ao palco agora. O Palhaço Paçoca pediu a atenção. Tirou do bolso um revólver. Pôs o cano na boca e, antes que alguém pudesse dizer qualquer coisa, puxou o gatilho. O corpo caiu ao chão e o sangue que espirrou nas cortinas, foi como tinta, em uma tela branca, formando uma pintura grotesca.

A platéia não acreditava no que vira. Alguns, imediatamente, levantaram de seus lugares e correram para perto do corpo para fotografá-lo. Alguém gritou ao fundo: "Eu filmei tudo com o meu celular!". Outros diziam: "Posta logo no youtube!". Os pais, ao ouvirem o som do tiro, apareceram e ficaram horrorizados com aquela cena. As crianças não se continham, falavam entre si, compartilhavam fotos do corpo na internet. Enfim, o Palhaço Paçoca, de fato, havia acertado. Oferecera exatamente o que aquele público desejava. Seu milésimo espetáculo fora um sucesso, afinal.




Fonte imagem: http://listmoor.com.br/wp-content/uploads/palhaco-morto.jpg

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