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sábado, 30 de março de 2013

Fotografias


Sentado à beira do abismo, cansei de esperar a terra ceder. Resolvi adiantar o fim, ele era inevitável afinal. A vida chegara ao seu limiar, mesmo meu sorriso era de desprazer. Empunhei então um antigo álbum de fotografias, e decidi morrer de nostalgia. Tão certo estava do poder lesivo de minha arma, que acreditava ser apenas questão de tempo até ver findo meu infeliz tédio. Caminhei pela varanda da casa à procura de um lugar à sombra, onde pudesse sentir a brisa, mas que permitisse ao sol lançar sobre mim alguns raios de luz. Derradeira vaidade. Sentei-me, por fim, sob uma mangueira que ficava no quintal. Respirei fundo e abri o álbum.

A memória, que já enfrentava a ação do tempo, me fez demorar algum tempo até reconhecer as pessoas na primeira fotografia. Nela havia duas crianças de mãos dadas: Julia e eu. Talvez tivesse eu 12 anos no momento registrado na imagem, Julia devia ser mais nova poucos meses. Recordei algumas poucas coisas daquele tempo: o sorriso de minha mãe, os conselhos de meu pai, as tardes de futebol na pracinha. Por fim, me veio a mente a lembrança do primeiro beijo, dado em Julia, meu primeiro amor talvez. Meras memórias incertas, nada que, de fato, me emocionasse.

Supondo que aquela primeira parte continha apenas imagens da infância, fechei o álbum novamente e abri em uma página aleatória, localizada mais ao meio. A fotografia da vez era dos tempos de faculdade. Muitas pessoas compunham a imagem, foi tirada durante uma passeata a qual não recordo o dia ou o motivo. Ao centro da imagem, Soraia segurava em minha mão. Era uma jovem branca que esbanjava jovialidade. Eu também era belo naqueles tempos. Talvez tivesse amado Soraia mais que a mim mesmo, mas por algum motivo ela não permanecera em minha vida. Tal conclusão pôs fim a qualquer faísca que pudesse tentar aquecer meu envelhecido coração.

Avançando mais um pouco as páginas, deparei-me com uma foto de meu casamento. Helen e eu fazíamos aquela tradicional pose em que o casal brinda com os braços entrelaçados. De repente, veio a mim a doce lembrança daquele dia. A felicidade com que subimos ao altar, o nervosismo que senti ao responder o “sim” ao padre. Lembrei ainda do quanto resisti para tirar aquela fotografia. Sempre achei a pose ridícula, mas agora percebia que a imagem ficara bela afinal. Helen parecia um anjo naquele dia, e eu jurava ser eterno. Infelizmente não aguentamos o peso da vida a dois. Decidi seguir à próxima imagem antes que as dolorosas memórias da separação despertassem.

As fotografias que se seguiram mostravam uma fase de minha vida em que nada era certeza e as paixões eram voláteis. Foram anos vividos intensamente, que talvez tenham sidos bons, mas que agora me pareciam perdidos. Em comum, as fotos tinham apenas a minha presença, os rostos ao lado do meu nas imagens mudavam conforme a paisagem. Eram aventuras, laços momentâneos, de desejo e liberdade. Talvez, algum daqueles sorrisos tivesse-me feito ter vontade de ficar um pouco mais. Mas o fato é que eu, por algum motivo, sempre partia. Em suma, eram páginas vãs de minha vida, tratei de seguir em frente.

Prossegui à penúltima página, esperando que uma fotografia mais recente fosse capaz de provocar em mim o efeito que buscava desde o início, e que as imagens anteriores não conseguiram. Meu olhar se encheu de doçura, quando vi a imagem de Ana sentada ao meu lado sob a mesma árvore onde eu estava agora. Uma única lágrima percorreu meu rosto, mas secou solitária, sem que outra a seguisse o caminho que ela traçara. A emoção fora minguada pela lembrança da perda. Sofrera tanto quando aquele câncer a roubou de mim, que agora já não doía mais. Desfiz-me da dor, que levou consigo as boas lembranças.



Faltava-me apenas uma página agora. Mas já não havia, em mim, ânimo para prosseguir em minha empreitada. Meu plano fracassara: todas aquelas pessoas passaram pela vida e foram importantes, mas agora, nada representavam, não passavam de imagens no papel, meras fotografias. A tão desejada nostalgia não viera para sufocar-me. Em seu lugar, eu sentia o vazio, que parecia corroer-me por dentro, como se o sangue fosse ácido a desfazer o coração a cada respiração. Criei coragem e virei a página. O susto trouxe consigo a conclusão derradeira, a resolução de minha vida. Desfaleci solitário, pois mesmo o sol se escondera atrás das nuvens. Sobre meu colo, caiu o álbum aberto na última página, em branco. Não havia imagem alguma nele, pois, desde a morte de Ana, minha vida se perdera. Morri tardiamente, após descobrir que há muito já não vivia.





Fonte imagem: http://digasim.files.wordpress.com/2009/11/albumnina-5.jpg

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