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sexta-feira, 15 de março de 2013

Relacionamentos

    Sexta-feira a noite e lá estávamos nós, uma vez mais, reunidos no espaço mais democrático e tradicional, para discussões e reflexões filosóficas, da famigerada pós-modernidade: o boteco. Éramos seis, sentados à mesa, exercitando o melhor de nossa retórica que, após alguns copos de cerveja ou de um destilado qualquer, se tornava mais fluida e passional. O assunto já oscilara entre política, religião, mercado de trabalho, inflação e futebol. Chegávamos então ao ponto mais delicado - complexo - de nossa discussão. Era, enfim, chegada a hora de falar sobre nossos relacionamentos.



    O André foi o primeiro, como sempre. Solteirão, com carteira assinada desde que eu possa me lembrar, se vangloreava diante de nós, casados. Apostava com todos que passaria pela vida sem casar, dizia ser desses que nasceu para ser só. Como já conhecíamos a ladainha, apenas ignorávamos a gabolice. Afinal, sabíamos que as coisas não eram bem assim. No passado, André tivera uma namorada, pela qual era capaz de fazer qualquer coisa. Mas, ele era mais uma infeliz vítima do temido mal de amar sozinho. Um dia ela disse adeus e ele tornou-se o que é. Logo, não fosse a frustração, estaria ele aqui, como qualquer um de nós, com aliança no dedo. Era visível que ele se sentia só, embora não admitisse. 

    "Eu amo a minha mulher, mas a minha sogra...", foi assim que o Gil começou sua manifestação. As críticas à sogra já eram tradição. Embora nenhum de nós visse qualquer problema com a pobre senhora, o Gil sempre tinha uma nova para contar. Após alguns anos, começamos a sustentar, secretamente, a teoria de que aquele era o único modo que ele dispunha para puxar assunto. Costumávamos brincar, inclusive, que se um dia a sogra morresse, ou o Gil deixaria de se manifestar por falta de reclamações; ou então assumiria de vez que sempre amou a sogra e lamentaria a falta da finada. Enquanto esse dia não chegava, apenas o escutávamos, fingindo prestar atenção, fazendo aqui e ali uma piadinha.

    O Bira costumava falar pouco, mas sempre nos surpreendia. Dentre todos nós, ele era o mais jovem. Casara cedo, após engravidar a namorada. Por conta disso, jamais se se adaptou de fato à vida de casado. Entregue às aventuras, tinha sempre uma história sobre uma vizinha, secretária, amiga do colégio...alguém que ele estava "pegando" escondido da mulher. Hoje não fora diferente: a bola da vez era a cunhada. Ele amava a mulher, mas amava ainda mais a adrenalina dos casos. De início, conversávamos com ele, aconselhávamos. Mas, todos acabaram desistindo. Algum dia quem sabe ele se aquietava. Ou então, a mulher descobriria e ele acabaria solteiro, livre para vivenciar as coisas das quais jamais abriu mão.

    Eu e o Fernando éramos os mais velhos e, aparentemente, os únicos satisfeitos com o que tínhamos. O Fernando era casado há 10 anos, não tinha filhos. Amava a mulher e sempre estava sorridente, como se a vida fosse uma eterna lua de mel. Eu estava casado há pouco mais de 12 anos, tinha dois filhos e desejava mais dois. A vida não era perfeita, mas eu amava minha esposa. Eis os motivos que faziam com que tanto as manifestações de Fernando quanto as minhas fossem breves e tediosas. Afinal, de felicidade não se queixa, se celebra. Era por isso que, quase sempre, fazíamos um brinde para que tudo se mantivesse como estava. Pelo menos para mim e para o Fernando.

    Entre nós, faltava apenas o Renato dizer suas palavras. No entanto, ele, que falara, enérgico, durante toda a noite, estava agora calado e pensativo. Separado há poucos meses, ele ainda não parecia haver superado. Respeitávamos sua situação, mas o silêncio constrangedor o forçava a dizer alguma coisa. "Hoje fazem seis meses. Eu não a vejo há quase um mês", desabafou. Todos sabíamos que, embora separados, ele e a ex costumavam se encontrar. Era visível que aquela situação fazia mal para ele.

    O Renato a amava, mas sabia que aquilo devia parar. Há duas semanas prometera não mais a veria. Agora estava lá, cabisbaixo, olhando para o celular. Durante alguns minutos ninguém disse nada. Até que o celular do Renato tocou. Ele olhou para nós, sem saber o que fazer. Mas, antes que alguém pudesse dizer alguma coisa, ele atendeu. "Estou indo", respondeu e, em seguida, desligou. Olhou-nos uma vez mais, temendo os olhares de censura. Como não houvesse nenhum, se despediu e saiu. Nós sabíamos que era ela. Sabíamos também que, no dia seguinte, o Renato ligaria para um de nós querendo conversar - desabafar - sobre a recaída.

    Durante alguns minutos, permanecemos calados, devotando-nos apenas ao gosto forte de nossas bebidas. Alguém poderia ter proferido alguma crítica à atitude de nosso amigo. Mas ninguém ousou. Nem mesmo André se manifestou. Mesmo ele já havia amado alguém, sabia como eram essas coisas. Todos nós sabíamos. "Amar não é fácil", concluiu o Fernando, dessa vez não tão sorridente. Concordamos, afinal, apesar de suas peculiaridades, nossos relacionamentos tinham seus altos e baixos. Aquele era o momento difícil de Renato, deveríamos apenas apoiá-lo, como bons amigos fazem. Tomamos o que ainda restava em nossos copos e pedimos a conta. Não havia mais nada a ser dito naquela noite.



fonte imagem: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjEFMD3RgLzby3jBiBhqCbAfA4hXPVA965vnGRkoA015I5cW7SWV8vWOzlzUBxrjYSnOsckMtBYL12aA6n6B10Kyeo1gmqcFQ3nBwdu63nRw5JV4iw7YSaJLDmQbD5MfLSGB1gdFA0fFBgM/s1600/ant2.jpg

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