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sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Felicidade Delirante

     Calmamente, ele afastou as cortinas com a ponta dos dedos, e lançou um olhar para o jardim do hospital. Contemplou, por um instante, os pacientes, dotados das mais variadas enfermidades mentais. Por fim, deteve seus olhos no jovem que parecia discursar, à sombra da mangueira. Observou-o com calma. De pé, ele falava e gesticulava, deixando escapar um sorriso pelo canto da boca, vez ou outra. Parecia falar para uma multidão de conhecidos. Tamanho entusiasmo impressionaria, não fossem os anos de experiência do observador.
     Decorridos alguns segundos, ele voltou sua atenção ao homem sentado a sua frente. Seu nome era Roberto, colega de profissão há alguns anos. Coincidentemente, tinham a mesma idade. Tinham a mesma formação. Mas, distintos modos de conceber o tratamento das patologias da mente. Roberto, cansado do silêncio, achou oportuno quebrar o gelo:
   “Vou buscar um pouco de café. Quer um pouco, Jonas?” – Mostrou-se gentil.
    “Na verdade, não. Ainda não vá. Conversemos um pouco sobre aquele rapaz.” – Disse e em seguida gesticulou, pedindo a Roberto que se aproximasse da janela.
     Atendendo ao pedido, Roberto chegou mais perto de Jonas e, em seguida, olhou o jovem, que agora já não discursava. Sentado ao chão, parecia escutar a opinião de seus companheiros, fazendo breves intervenções.
     “Você ficou responsável pelo tratamento deste rapaz, não foi, Roberto?” – Disse Jonas enquanto ambos olhavam pela janela.
     “Sim. Desde que ele aqui chegou, sou eu quem tem cuidado dele.”
“Pelo que vejo, trata-se de esquizofrenia. Poderia me falar mais a respeito dele?”
    “Sim, ele é esquizofrênico. Chegou aqui há nove meses. Segundo o que me foi dito, ele cresceu em uma vila não muito longe daqui. Uma destas que, nestes tempos de guerra, é invadida e pilhada pelos inimigos. Aconteceu isso com a dele. Ele foi o único sobrevivente.”
      “Isso foi há muito tempo?” – Indagou Jonas.
     “Não sei dizer. Quando ele chegou, já manifestava os sintomas de esquizofrenia. Ele só costuma falar quando está sozinho.”
     “Como anda o tratamento dele? Pelo que posso ver, não houve muito progresso.”
   “Não diria isso. Há alguns meses, comecei por ministrar medicamentos para tratar a esquizofrenia e atenuar os sintomas. Nas primeiras semanas, obtive certo êxito. Mas nada muito animador. Ele seguia sem falar com ninguém. Após algumas semanas tentando, achei por bem suspender a medicação.”
   “Mas por quê? Se havia a possibilidade de evolução, ainda que lenta, porque suspender a medicação?” – Havia um tom de indignação na voz de Jonas, daqueles característicos de quem está prestes a censurar um comportamento.
     “Sabe Jonas, nem sempre o que a medicina julga ser o melhor para o paciente, acaba o sendo.” – Respondeu com um sorriso ante a exaltação do colega.
     “Justifique-se!”
     “Eu o farei. Olhe para aquele jovem. Vê o sorriso em seu rosto?” – Lá embaixo, sentado ao pé da mangueira, o rapaz sorria como se aquele fosse o dia mais feliz da sua vida. – “Este foi o motivo pelo qual suspendi o tratamento.”
    “Não consigo compreender seu raciocínio. Seja mais explícito, por favor.” – Jonas já estava impaciente. Começava a achar que Roberto estava sendo negligente.
   “Pois bem. Após algumas semanas de tratamento com medicamentos, a esquizofrenia não havia sido totalmente controlada. Houve uma piora no quadro. O rapaz mantinha-se isolado e não se alimentava mais. Não conversava com os psicólogos, ignorava a todos. Quando estava sozinho, chorava. Aos poucos, foi desenvolvendo um quadro de depressão, que culminou com uma tentativa de suicídio.”
     “E você achou que abandonar o tratamento era o melhor a ser feito?”
   “Sim. Veja o quão feliz ele parece agora. Após alguns dias sem o medicamento, o quadro de depressão foi cessando aos poucos. Ele voltou a alimentar-se. É certo que ele permaneceu a tendo alucinações, falando sozinho. No entanto, já não havia tristeza. Sorria e era feliz. Tenho a teoria de que ele vive a ilusão de que não aconteceu o ataque à vila em que morava e que todos aqueles que ele ama estão ao seu lado novamente. Acho que é isso que o faz ser tão alegre.”
     “Então é isso? Preferes manter um paciente enfermo a tentar oferecer-lhe a cura?”
    “Cura. Para quê tentar se os progressos foram mínimos, e se assim ele é feliz? Porque tentar curá-lo e trazê-lo de volta a um mundo onde a vida que ele tinha lhe foi tirada e não há qualquer razão que o faça querer viver? Somente para provar para nós que nossa medicina é capaz de recuperá-lo? De todo modo, ele há de passar o resto da vida aqui, então, prefiro vê-lo atrelado a essa felicidade delirante. Se pretendes me censurar, saiba que pouco me importa. Quisera eu poder me perder em um mundo de felicidade eterna, como o dele. No entanto, assim como você, sou obrigado a viver nesse mundo de sanidade, onde mais vale ser normal do que ser feliz. Eu invejo aquele sorriso, porque sei que ele é real, mesmo sendo motivado por um delírio.” – Disse, em tom de desabafo.
    Em seguida, afastou-se da janela e sentou, aguardando a resposta do colega. Jonas perdeu o olhar pelo jardim por mais alguns segundos, enquanto parecia pensar. Voltou-se ao colega, mas nada disse. Em seu íntimo, sabia que concordava com ele. Não com relação ao tratamento do paciente. Mas sim quanto ao fato de também desejar viver outra vida que não aquela. Quisera ele, também, poder sucumbir a uma felicidade delirante.



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