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terça-feira, 16 de outubro de 2012

Amor às estrelas...

     Perguntava-me como pode o ser humano ser tão inconstante. Porque certas coisas simplesmente mudam ao sabor do tempo? Como pode alguém um dia furtar nossos mais sinceros suspiros de amor, e no outro sequer conseguir um olhar nosso, que seja? Porque nada é, sempre está? Tantas perguntas respondidas por uma simples constatação: o grande problema está dentro de nós. Trazemos em nosso peito um paradoxo pulsante. Tão vigoroso, que nos assegura a vida, mas ao mesmo tempo frágil, que nos torna fracos.
     O que suscitou tais indagações? Como enfim cheguei àquela conclusão? Pois bem, deixe-me contar uma estória. Se for verídica ou não, tanto faz. Conheço verdades inquestionáveis, que até mesmo as hábeis mãos que as edificaram não ousam questionar. Conheço pessoas que acreditam ser a mentira apenas uma verdade mal contada. Enfim, não convém discutir. Vamos ao que interessa, chega de digressões.
     Houve um dia um rapaz, desses ingênuos, que acreditam ser o horizonte formado pelo beijo entre céu e mar. Não correra pelas ruas da vida durante a infância, apenas sabia o que os livros contavam. Tinha idéias demais, em relação ao seu tempo. Perdia-se a contemplar o céu, enquanto os outros caminhavam de cabeça baixa. Era um profundo conhecedor do inútil, diziam alguns. Vivia só, desde que os pais se foram. Amigos, não tinha. Herdeiro abastado, isolado do mundo. Sequer cobiçado, solitário profundo.  
     Durante as noites, seu telescópio era extensão do olhar. Em uma casa sem janelas, a clarabóia revelava o que ele desejava ver. Perdia-se por entre constelações, delas era amigo. E, como não raro acontece, a amizade quis ser amor. Dentre as estrelas, havia aquela que brilhava mais de perto. A enxergava a olho nu, quase podia tocá-la. Enamorou-se dela sem perceber. Deu-lhe um nome, Letícia. A ela confidenciava seus mais tolos devaneios. Ria-se com ela. Era completo enfim.
     Dormia para não ver o sol. Despertava quando a lua surgia, para abençoar aquele amor. Encontravam-se todas as noites. Havia sempre uma novidade a ser contada. Ela, como sempre, ouvia paciente. Entregue a ela, fez ele diversos estudos sobre as constelações. Quis descobrir a origem de sua amada, conhecer sua família. Cada descoberta era comemorada. Mas algo faltava, ele sentia. Tantas vezes quis alçar vôo, para roubá-la para si. Um beijo sequer seria suficiente. Suspirava dolente, aquele amor à distância.
     Contudo, o pior estava por vir. Vieram as noites de inverno, nubladas e frias. Ignorando a temperatura, ele insistia em abrir a clarabóia, na tentativa de encontrar sua amada perdida entre as nuvens. Jamais conseguia, a densa camada acinzentada escondia até a Lua, às vezes. A solidão retornara, afinal. Não obstante a distância, ainda havia aquele empecilho. Acabavam-se os sonhos e cada gélido anoitecer. A dor não cabia em seu ser.
     Bate à porta então, certa manhã, alguém. Coisa rara naquela casa. Ignoraria como sempre fazia. Mas, há muito, se sentia só. Levantou-se com calma e durante o trajeto até a porta, repassou na mente o que deveria dizer. “Bom dia”, “Não estou interessado, obrigado”. As breves palavras de sempre. Abriu a porta e a luz penetrou com vontade no ambiente. Os olhos arqueados demoraram a se adaptarem. Quando, por fim, pode ver, emudeceu.
    “Bom dia, está frio aqui fora, preciso de trabalho. Posso limpar a casa em troca de comida e abrigo”. Ela disse tudo depressa para receber apenas uma resposta. Decerto já havia batido em outras portas. No entanto, ele nada ouvira. Estava perdido a contemplá-la. Ela insistiu: “Por favor, posso trabalhar aqui?”. Ele gaguejou e abriu a porta. Aquilo parecera um sim. Ela entrou e demorou certo tempo até que ele pudesse começar um diálogo.
     Ela falava demais. Enérgica, gesticulava sem parar. Tímido, ele perguntou o nome da moça. “Letícia”, disse ela. Nome familiar pensou. Lembrou-se de sua estrela perdida. Sentiria saudades, mas a moça não deixou. Perguntava-lhe sobre tudo, enquanto apanhava os livros jogados ao chão. De repente ele tinha alguém que podia ouvi-lo. Alguém que respondia, questionava, discordava. A priori, irritante. Após alguns dias, já não conseguia viver sem ela. Reviravolta tamanha era aquela.
     As semanas se passavam entre conversas. Ele contava o que sabia. Ela falava o que o mundo ensinara. Era órfã, viveu em um orfanato durante toda a vida. Após completar dezoito anos, teve de sair. Conheceu alguns lugares antes de bater àquela porta. Ele sequer podia sentir os dias, esquecera das noites. Porém, quando o inverno se despediu, quis ela partir. Mas ele não deixou. Não conseguiria mais viver sem ela. Parecia recíproco o querer. Por fim, se renderam ao óbvio. E os dias solitários se foram.
     Ele aprendeu a olhar o mundo a sua volta. A ensinou a olhar o céu. Certo dia observavam as estrelas pelo telescópio. Ele destilava seu conhecimento enquanto ela perdia o olhar na imensidão da noite. Ela então indagou sobre uma estrela em especial. Tirou os olhos do telescópio e apontou-a com a mão. Tão próxima estava aquela estrela. Ele então se recordou: em outros tempos, aquela estrela fora seu amor, sua companheira, confidente.
    Pensou em narrar seu devaneio amoroso, mas acabou por desistir. Aquele era um segredo só seu, e da estrela Letícia. Desconversou e convidou-a para ir à biblioteca. Mas, antes de sair, lançou um último olhar ao céu. Aquela fora sua despedida. Alguns segundos se passaram. Ele nada sentiu. Embora conhecesse aquela estrela como se fosse sua, ela nada mais representava. Não havia mais, em seu coração, espaço para ela. Ele abaixou o olhar, e jamais voltou a observá-la como antes. Embora com o mesmo nome, o amor já não estava no céu, sua estrela agora o tomava pela mão e esperava um filho seu.


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