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quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Prisioneiro

     “Se eu me arrepender agora, serei perdoado?” – perguntou Marcos.
     “Não tem volta. Sua sentença já foi prolatada. Não existe possibilidade de perdão.” – respondeu o guarda.
     “Ótimo. Mesmo porque, seria inútil me arrepender de um crime que não cometi. Não é mesmo?”
     “Ainda insiste nisso. Cale a boca e me diga logo o que vai querer para sua última refeição.
     “Tudo bem. Quero o feijão que minha mãe fazia. Aquele que eu costumava comer a cinco anos atrás, antes de vocês me prenderem. Mas, espere. Isso agora é impossível, não? Será porque ela faleceu há dois anos e eu sequer pude dar-lhe o último adeus? Enfim, quanta hipocrisia você me oferecer um último desejo vil em troca de tudo aquilo que vocês me roubaram.” – Falou com uma ironia áspera.
     “Dane-se. Daqui a poucas horas você não vai mais poder se lamentar. Tanto faz se sua barriga vai estar cheia ou vazia.”
     Após dizer isso o guarda seguiu pelo longo corredor que separava aquela ala das demais deixando Marcos sozinho. A contar daquele instante, ele tinha pouco mais de 3 horas vida. Como não havia manifestado desejo por uma última refeição, passaria aquele curto tempo com a certeza de não ser incomodado. Mas o que se passa pela cabeça de um homem que sabe que cada segundo é um passo dado rumo ao abismo que o separará para sempre da vida que conhece?
     No caso de Marcos isso pouco importava. Já estava morto há tempos. O que se seguiria seria uma mera formalidade para afirmar a quem duvidava que, de fato, já não havia vida naquele homem. Aquele olhar vazio denotava perfeitamente o desejo de já não existir. O ódio que, a princípio, se apoderara de Marcos, já havia perdido forças e se via vencido pela conformidade. Não havia nada a ser feito. Como pode um homem lutar contra as imposições de quem detém o poder? Impossível.
     Há poucos anos, a vida era diferente para Marcos. Crescera em uma favela da periferia da cidade. Vítimas das contradições sociais, vivenciou de perto os problemas que só afetam às classes baixas. Ainda na infância perdeu o pai vítima de uma bala perdida. Perdeu alguns amigos para o tráfico. Outros para a violência comum das grandes cidades. Todos imaginavam um futuro semelhante para ele. Mas ele queria mais para si. Queria vencer esse mundo injusto do qual era parte.
     Embora fosse de família humilde, ele prometera para si desde o início que um dia seria alguém. Esforçava-se para isso. Um futuro o aguardava na faculdade. Engenharia era o curso escolhido. Seria o primeiro da família a “alcançar o nível superior”. Sua mãe orgulhava-se, afinal, todos a julgavam incapaz de criar um filho, sozinha, depois que ficou viúva. Mas, ela provou o contrário. Aos dezoito anos, Marcos estava no último ano do ensino médio e todos os professores previam um futuro promissor para o rapaz.
     Faltavam dois meses para a prova do vestibular, quando um professor de física ofereceu a Marcos uma bolsa em um dos melhores cursinhos da cidade. O rapaz aceitou sem nem pensar. A mãe, embora orgulhosa, demonstrou receio quanto a tal proposta. Temia que Marcos sofresse algum preconceito por ser de pobre ou, o que era mais fácil, por ser negro. Mas, após muita insistência ela permitiu.
     E veio o primeiro dia de aula. Marcos saiu de sua casa na periferia da cidade e após tomar três conduções conseguiu chegar ao cursinho. O professor o aguardava à entrada do lugar. Talvez porque temia que o porteiro fizesse o rapaz passar por algum constrangimento. Desde a entrada Marcos despertou olhares. Talvez fosse o primeiro negro a adentrar aquele ambiente. As pessoas apontavam para ele e comentavam entre si.
     “Ignore-os. Isso acontece com qualquer novato. Lembre-se porque está aqui. Não deixe que ninguém fique entre você e seus sonhos. Concentre-se nas aulas e tudo dará certo.” – Disse o professor na tentativa de tranqüilizar o aprendiz.
     De fato, Marcos ignorou qualquer recepção hostil e manteve o foco nas aulas. Respondeu a perguntas, tirou dúvidas. Atraiu olhares para si, alguns de admiração, mas muitos de inveja. Após responder uma pergunta, foi presenteado com um livro por um dos professores, como uma espécie de incentivo. A alegria foi tamanha que ao término da aula o rapaz saiu correndo. Queria chegar logo em casa para contar à mãe como foi seu dia.
     Já havia caminhado três quarteirões e estava na metade do caminho até a parada de ônibus quando lembrou que havia esquecido o caderno embaixo de uma das cadeiras. Voltou correndo para apanhá-lo antes que o porteiro fosse embora. Já estava escuro e a rua estava deserta. Quando estava a poucos metros do cursinho ouviu um gemido. Conteve os passos. Olhou para o lado e viu um beco que ficava ao lado de um prédio de luxo. Aproximou-se da entrada e pode ver caído sobre uma pilha de lixo, um rapaz, mais ou menos da sua idade, agonizando ensangüentado.
     Marcos correu para socorrê-lo. Tomou-o nos braços. Em seus últimos suspiros o rapaz se debatia espalhando sangue por toda a roupa de Marcos. Este decidiu correr para pedir ajuda. Correu em direção à saída do beco, mas, antes que chegasse até a rua, uma viatura da polícia parou. Ele tentou alertar aos policiais, mas eles sequer quiseram ouvi-lo. Jogaram-no ao chão e lhe desferiram vários golpes antes de algemá-lo. Enquanto isso, outro policial caminhou até a pilha de lixo e encontrou o outro garoto, já sem vida.
     Marcos foi autuado em flagrante sem qualquer chance de defesa. Enquanto sua mãe não chegou à delegacia, foi torturado por vários policiais que queriam uma confissão. Marcos era inocente, mas só sua mãe acreditava nele. Não havia provas da autoria do crime. Contudo, como o rapaz assassinado era filho de família influente, Marcos permaneceu preso. Entre todo o processo, decorreram três anos desde o ocorrido até o dia do julgamento.
     Chegado o dia, a defesa não havia consegui reunir muitas provas da inocência de Marcos. A acusação, pelo contrário, tinha várias provas. Desde a faca utilizada para esfaquear a vítima, que não continha digitais ou qualquer vestígio que provasse ter sido usada por Marcos; até mesmo um vídeo da câmera de segurança do prédio adjacente ao beco, que mostrava imagens de um rapaz negro mais forte, que trajava uma camisa de cor diferente da que Marcos usava no dia, arrastando a vítima para o beco.
     Por si só, essas provas já invalidavam a acusação contra Marcos. A defesa tentou reafirmar a inocência pedindo para que o vídeo da câmera de segurança fosse adiantado alguns minutos, até o instante que mostrava o verdadeiro assassino saindo do beco e, depois, o momento em que Marcos entrou para ajudar o rapaz. Porém, esses instantes haviam sido apagados. Segundo disseram, a câmera havia dado defeito.
     A defesa não conseguiu nenhuma testemunha. Talvez porque ninguém queria depor a favor do rapaz pobre que não pertencia ao bairro onde o crime aconteceu. Porém, a acusação trouxe várias. Diversos amigos da vítima que alegaram que o jovem assassinado tinha envolvimento com drogas e que devia para traficantes. Alguns chegaram até a apontar Marcos como o traficante. Diante disso, a acusação induziu o tribunal a pensar que tudo era apenas mais um crime de acerto de contas. Que o jovem traficante da favela havia ceifado a vida do pobre rapaz de classe média por uma quantia irrisória qualquer, fruto de uma atividade ilícita.
     Em face de tais argumentos, e do fato de que o juiz havia sido corrompido pela família da vítima, Marcos foi condenado à pena de morte por injeção letal. Esta sentença, cruel e extremamente arbitrária, apenas refletia os traços da sociedade do país do ocorrido. A elite detinha o controle de tudo e sua vontade era perpetuada enquanto seu poder financeiro pudesse arcar com os caprichos dos “poderosos”.
     A defesa tentou recorrer, mas sem sucesso. A condenação foi demais para a mãe de Marcos. Cardíaca, ela acabou passando mal. Uma ambulância levou-a até o hospital, porém, a deficiência do sistema de saúde público acabou por fazê-la sua vítima. Marcos soube a notícia na cadeia. Privado de sua liberdade, ele teve que lamentar em sua cela. A data da execução foi agendada para dois anos após o julgamento. Segundo rumores, porque a família da vítima exigiu tal prazo. Decerto queriam que o rapaz sofresse as mazelas do sistema penal antes de perder a vida.
     E assim Marcos permaneceu padecendo enquanto aguardava sua sentença definitiva. Blasfemava, indagava aos céus o motivo de tamanha injustiça. Mas a revolta logo se desfez. De nada adiantaria. Por mais que quisesse, não podia ir contra o “sistema”. Do rapaz alegre e esperançoso de outrora, já não restava nada. Era apenas um ser vazio, indigno até das coações dos demais presos.
     Marcos olhava as nuvens que apareciam através das grades da cela quando sentiu que alguém chegara à porta da cela. Era o guarda que vinha informa-lhe que seu dia havia chegado. Este lhe explicou o procedimento que seria utilizado, como se saber que dormiria antes de morrer fosse tranqüilizar Marcos. Um breve diálogo se seguiu entre ambos até que Marcos se viu sozinho novamente.
     Em sua solidão ele aguardava o passar do tempo. Já estava preparado para aquele momento desde o dia em que sua mãe havia falecido. Desejava a morte como se ela fosse uma linda virgem a atirçar-lhe a libido. Então as grades se abriram. Era chegado o momento. Caminhou pelo corredor de olhos fechados. Esperava dormir para não mais acordar. Ou então, como ele havia se convencido, acordaria enfim daquele pesadelo. Em instantes abraçaria sua tão amada mãe e esqueceria essa vida. Já não seria mais prisioneiro das injustiças.

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