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sábado, 26 de novembro de 2016

O velho e o tempo

     Foi em um dia de chuva forte, dessas que nos prendem em casa. Cuidava eu de meus afazeres de menino, ao passo que meu avô velhava em sua cadeira de balanço. Lembro-me de ter lhe entregue minha atenção no instante em que ele pôs a mão no pulso e desabotoou seu velho relógio. Em seguida, começou a dar corda nele, deixando o olhar passear pela rua, que se banhava na água da chuva.

     Conquanto aquilo não fosse nada de extraordinário, e sim um hábito do velho, reconheço que foi a primeira vez que reparei em seu costume. O relógio, se bem lembro, era bastante antigo, um dos primeiros modelos fabricados no país. O dourado desbotado e a pulseira de couro ressequida não só atestavam sua idade, como também corroboravam a história que meu avô costumava contar sobre como ganhara aquele relógio. Dizia ele: 

“Quando completei 18 anos, tudo o que eu mais queria na vida era uma lambreta. Pedi uma ao meu pai e ele me indagou sobre o motivo de meu querer. Eu poderia ter lhe dito que era para poder impressionar as garotas, mas tudo o que conseguir dizer foi que ‘com a lambreta eu conseguiria chegar rápido onde quisesse, que não perderia mais tempo’. Meu pai sorriu e não me disse nada. Saiu de casa sozinho, sem avisar a ninguém e passou o dia fora. 

À noite, quando ele voltou, eu estava ansioso, pensando que ele me traria a dita lambreta. Não consigo descrever a decepcionante surpresa que tive quando ele me entregou aquela pequena caixinha de madeira. Relutei em abri-la, tentando evitar a frustração. Mas o olhar de meu pai me obrigou e, quando vi o relógio, simplesmente emudeci. 

Meu pai tirou-o da caixa e o pôs em meu pulso. Em seguida, me deu o maior presente que eu poderia receber. Olhando em meus olhos, proferiu suas sábias palavras: Filho, quero que você olhe para este relógio. Perceba que ele é capaz de contar o tempo, mas não o controla. Ao contrário do que você pensa, não se ganha ou perde tempo. Ele é mais forte que todos nós. É uma fera que não se pode domar. Pouco importa se você irá depressa ou devagar a algum lugar, você só chegará se o tempo permitir”.

     Naquela época eu não entendia o significado daquela história. Na verdade, apesar de tê-la ouvido por diversas vezes, a única ocasião em que eu, de fato, lhe dei atenção, foi naquela tarde chuvosa. Após perceber que eu o observava em silêncio, meu avô me pôs em seu colo e fez questão de contá-la novamente. Algo me diz que ele sabia que aquele era o momento exato, quando enfim teria a minha atenção. 

    O velho contou tudo com calma, olhando em meus olhos, mas sem cessar o movimento que fazia com as mãos calmamente, dando corda no velho relógio. Quando ele terminou, fiquei em silêncio por alguns instantes observando seu movimento quase de mecânico. Por fim, perguntei: “Vovô, por que o senhor dá corda no relógio todas as tardes?”. 

     Ele me olhou por alguns instantes, sabia o que dizer, mas queria que eu entendesse, por isso quis escolher as palavras. Não saberia dizer qual foi o tom utilizado pelo pai do meu avô, quando lhe deu o relógio, mas imagino que tenha sido bastante parecido ao que o velho usou naquele instante para me explicar, pois sempre que recordo, é como se pudesse ouvi-lo falando uma vez mais. 

“Hoje, meu filho, só me resta dar corda neste velho relógio. Este é o meu afazer diário, o que me mantém vivo. Houve um tempo, é verdade, em que esta era apenas uma dentre tantas coisas que eu tinha para fazer durante o dia, mas hoje é diferente. Posso esquecer tudo, menos essa obrigação. Desde que o ganhei, não houve um dia sequer que eu tenha esquecido. Sabe por quê? Porque este relógio conta o meu tempo. É preciso que estes ponteiros trabalhem, para que eu saiba que o tempo está passando. Não sei quanto tempo terei, mas graças a ele posso saber quanto já tive. Por isso dou corda, porque se um dia o relógio parar, o tempo correrá e me deixará para trás”. 

     Ainda que ele tenha se esforçado para ser claro, eu não entendi muita coisa. Depois daquele dia, houve outras tardes chuvosas. Mas havia sempre algo mais interessante a fazer que ficar observando o velho se balançando em sua cadeira e dando corda em seu relógio. A despeito de meu desdém, ele seguia com sua missão, todas as tardes. 

     Até que um dia, quando eu já não tinha as tardes livres, meu celular tocou. “Teu avô”, disse minha mãe. Corri para casa e encontrei-a aos prantos no sofá, enquanto meu pai tentava consolá-la. Vovô falecera. O velório foi em casa, caixão aberto. Aproximei-me e meu olhar não procurou seu rosto, mas sim seu pulso. O velho relógio, que tanto trabalhara durante aqueles anos, estava parado. Os ponteiros enfim descansavam. O tempo deixara vovô para trás.



sexta-feira, 4 de novembro de 2016

O Desfecho

“Por que isso está acontecendo comigo? ”, indagava a si mesmo desesperado, enquanto andava em círculos, tentando, em vão, pensar. Queria chorar, mas o desespero era tal que nem mesmo as lágrimas queriam presenciar. Soltava gritos abafados, grunhidos, batia a cabeça na parede. Teria acordado a casa inteira, não estivesse sozinho. “O que o meu pai faria? ”. Como se uma luz pairasse sobre si, de súbito parou. Encheu um copo com água, tomando-o em seguida com a avidez daquele que bebe um antídoto ao saber que possui veneno correndo por suas veias. Puxou uma cadeira. Observou-a por alguns segundos. Sentou-se, por fim. 

Respirou fundo. Passou a mão nos cabelos desgrenhados. Apanhou um pedaço de papel e uma caneta para tentar organizar os pensamentos. Mas, embora mais calmo, ainda tremia. Decidiu repassar tudo mentalmente. Fechou os olhos, para se isolar na própria mente. Pôs-se a descrever em voz alta para si mesmo: “Deixei meus pais no aeroporto. Fui dar uma volta no carro novo. Tomei algumas cervejas. Voltei para casa. Atrope...”, sua voz engatou. Quis chorar. Respirou novamente. Engoliu a seco. Continuou: “Atropelei uma pessoa. Fugi o mais rápido que pude. ” 

Ficou em silêncio por alguns instantes, repassando os fatos que acabara de listar. De repente, levantou e correu até a garagem. Acendeu a luz e caminhou para a frente do carro. Observou calmamente, avaliando os danos. Inexplicavelmente, havia apenas um leve arranhão, quase imperceptível. Alguns respingos de sangue. Mais abaixo, algo que lhe causou um calafrio jamais sentido: uma mecha de cabelos loiros estava presa em um vão de encaixe do para-choque. Lembrava agora: a mulher estava de costas, o impacto a jogara para baixo do carro. Por isso aquele vestígio. Logo concluiu: era preciso se livrar de qualquer coisa que o pudesse incriminar. 

Apanhou a mangueira e um esfregão e foi limpando, como podia, os vestígios de sangue. Cuidadosamente, esfregou cada centímetro do para-choque do carro. No entanto, mesmo com muito esforço, não conseguia desprender aquela mecha de cabelos loiros. Forçou o jato de água na direção, passou o esfregão diversas vezes. Por fim, aceitou que teria de retirá-la com as mãos. Procurou por luvas, mas não encontrou nenhuma. Conformou-se em pôr uma das mãos dentro de uma sacola plástica. Apanhou um punhado de fios e puxou, mas os cabelos molhados escorregaram através do plástico liso. 

O desespero começou a lhe invadir novamente. “Por que não sai? ”, falava com a voz embargada. Desistiu. Foi até a cozinha e apanhou uma faca. Cortou uma parte dos cabelos. Mas, embora encurtados, eles ainda estavam ali, destacavam-se na cor preta do para-choque. Quis arrancá-los, mas escorregavam ainda mais, agora que estavam curtos. “Por que diabos você cortou, seu estúpido? ”. Ajoelhou. Tentou novamente. Relutou, mesmo sabendo que teria que usar as próprias mãos, sem proteção alguma, se quisesse tirar aquela derradeira prova de seu crime. 

Respirou fundo. Tirou a sacola da mão trêmula. Agarrou o que pôde dos cabelos e tentou puxar. Faltaram-lhe forças. Quis vomitar. Aspirou o ar com força. Apanhou com a ponta dos dedos uma porção dos fios dourados e puxou para si. Era o ângulo exato para desengatar. A mecha se soltou, enfim. Quis sorrir, mas, para a sua surpresa, as raízes dos fios ainda estavam presas ao seu pedaço de carne originário. Diante de seus olhos, oscilou, como um pêndulo macabro, aquela parcela de couro cabeludo, exalando ainda cheiro o de sangue. Tão forte quanto pôde, ele atirou longe o naco de pele, e vomitou tudo o que havia em seu estômago. Quando terminou, olhou para o carro. Aparentemente intacto, não dava qualquer mostra do que havia acontecido. Respirou aliviado. 

Caminhou até a cozinha. Parou no corredor. O coração disparou novamente. “O GPS do carro tem o registro do horário e do caminho que fiz. Preciso apagar tudo”. Correu de volta até o carro. A mão trêmula acionou o GPS do veículo. O sistema era novo. Ele ainda não sabia usar. Procurou pelas configurações. “Registros”. “Rotas recentes”. “Apagar rotas recentes”. “Você tem certeza? ”, indagou o aparelho. “Sim! Pelo amor de Deus! ”. “Registro de rotas recentes apagado”. Um peso parecia ter saído de seus ombros. Pousou a cabeça no encosto do banco. Quis se desesperar ao pensar que alguma câmera de segurança poderia ter registrado o ocorrido, mas lembrou que era madrugada, não havia movimento na rua, e o local do acidente não era residencial, apenas uma estrada erma. Respirou novamente. “Jamais descobrirão”. Enquanto repetia para si, adormeceu. 


Acordou com um gosto amargo na boca, e um desconforto no corpo. Saiu do carro e olhou novamente a dianteira do veículo. Estava intacta, de modo que chegou a cogitar se tudo não passara de um pesadelo. Contudo, enquanto caminhava até a porta, seu olhar, que displicentemente varria o chão da garagem, parou exatamente no lugar onde repousava um pedaço escurecido de carne de onde brotavam fios loiros brilhantes. Despertou de vez. Apanhou no chão a sacola, que outrora fizera as vezes de luva, juntou a pútrida evidência e amarrou o recipiente. Atirou a ao lixo, por fim, ciente de que aquela última aresta restava aparada. 

O sol brilhava através da janela. Tomou um banho e se sentiu renovado. Foi até a cozinha comer alguma coisa. Ligou a televisão. Enquanto passava geleia em um pão, o jornal da manhã noticiou: “Uma mulher foi atropelada nesta madrugada. Morreu na hora. A despeito do local onde o crime aconteceu e da falta de testemunhas, a polícia pode chegar até um suspeito. Segundo informações, a poucos metros do corpo, foi encontrada a placa de um veículo com vestígios de sangue. A perícia tenta agora identificar se o sangue na placa pertence à vítima. Caso haja a confirmação, será possível identificar o autor do crime. ” 

Atônito, ele largou o que tinha nas mãos. O desespero da noite passada invadiu-o de todo. Ele voltou até a garagem novamente. Parou diante do veículo, mas tinha os olhos fechados. Não queria olhar. Permaneceu por vários minutos ali, parado, criando coragem para encarar os fatos. Por fim, abriu os olhos com cuidado. O borrão preto foi ficando cada vez mais nítido, até que, com os olhos completamente abertos, ele recebeu o golpe: não havia placa alguma. Emudeceu. Chorou. Estava perdido. Iria preso. Seus planos, seus sonhos, tudo perdido. 

“Por que eu não fiz o que meu pai mandou e vim direto para casa? Por que isso está acontecendo comigo? Eu não posso ir preso. Eu tenho apenas 19 anos. Por que? Por que? ”. 

Horas de agonia se passaram. Ele caminhava em círculos dento da casa. A cada minuto, ia até a janela e observava o movimento da rua. “A polícia vai chegar a qualquer momento”, pensava. Abriu uma garrafa de uísque do pai. Quis tomar tudo em um só gole. Queria fugir. Seria pior quando o encontrassem. Era uma decepção para a família. O que seus pais diriam? Logo o resultado da perícia iria confirmar que ele era o assassino. Viriam direto até a sua casa. Estava perdido. Precisava fazer alguma coisa. Mas o que? 

O dia passara depressa. Começava a escurecer. Ele já não conseguia ver toda a movimentação da rua. Logo a casa estaria cercada. A polícia estava prestes a chegar. Quis ligar para o pai, pedir socorro. “O que meu pai faria? ”. Dessa vez não funcionou. O pai jamais teria cometido um erro daquele tipo. Ele agora chorava. Analisou como pode as possibilidades. Concluiu, por fim, que só havia um desfecho aceitável. Foi até a cozinha. Apanhou uma faca. Aproximou-a do pescoço. Faltou-lhe coragem. Queria morrer. Mas não era capaz. Subitamente, parou. Tivera a derradeira ideia. Caminhou até a garagem. Entrou no carro. Ligou o veículo. Pensou em fugir. Mas ali permaneceu. Passados alguns minutos, sentiu-se cansado. Uma sonolência lhe tomou. Adormeceu. Jamais despertou. 

Dias depois, o jornal local noticiou: 

Estudante é encontrado morto na garagem da própria casa. Aparentemente, o jovem chegou bêbado em casa e acabou adormecendo na garagem com o veículo ligado. Faleceu asfixiado pela ingestão de monóxido de carbono, um dos resíduos da queima do combustível. A polícia descarta a hipótese de suicídio. Dizem tratar-se de uma fatalidade. A família está inconsolável. O veículo, comprado no dia anterior à morte do jovem, seria seu presente de aniversário. Sequer havia sido emplacado. 

A notícia subsequente foi: 

A polícia arquivou as investigações do caso da mulher atropelada dias atrás. Após a perícia concluir que o sangue na placa encontrada próxima ao corpo era de um cachorro, e que a placa pertencia a um veículo da prefeitura, que não fora utilizado na noite do acidente, a principal linha de investigações foi descartada. A ausência de câmeras de vigilância ou qualquer testemunha ocular foi determinante para o arquivamento. Infelizmente, mesmo com toda a tecnologia, estes tipos de casos ainda são quase impossíveis de serem solucionados.



sábado, 11 de junho de 2016

A mácula

Nem mesmo a beleza da blusa de seda, cuidadosamente escolhida e passada, tampouco o colar de pedras delicadas, foram o bastante para apaziguar a energia dos olhares que lhe foram lançados, quando adentrou à sala de espera. Cadeiras voltadas em direção à porta, faziam de quem entrava, uma espécie de distração aos olhos cansados de esperar. Mas ela, embora não os visse todos, pode sentir a mudança nos olhares, quando caíram sobre sua figura. Alguns franziam a testa, outros desviavam o olhar, havia ainda alguns que simplesmente a encaravam. Seja qual fosse a reação, ela sabia que os pensamentos eram similares. Estavam todos desconfortáveis com sua presença.

Era a primeira vez, desde a reviravolta, que saía de casa para tratar de assuntos que não envolviam a própria saúde. A despeito de toda a relutância da família, insistira. Era aquele o primeiro passo de um recomeço. Devotara toda a manhã à escolha da roupa com a qual sairia, o batom que daria brilho aos empalidecidos lábios, os sapatos, a bolsa. Enfim dava voz à vaidade, da qual tivera que abrir mão, nos últimos meses. Era jovem e bela, embora a enfermidade houvesse embotado estas características. Mas, estava vencendo. O tratamento se aproximava do fim, a vida retomaria seu curso. Daí o porquê de seu entusiasmo.

Contudo, ao ser friamente fuzilada por aqueles olhos, percebeu que haveria um caminho mais longo a percorrer. Era como se todos fizessem questão de transparecer que sua figura lhes era incômoda. Quis chorar, correr, sair dali. Mas, resistiu. Não saberia explicar de onde tirou forças. Apanhou uma senha, e voltou o olhar procurando um lugar para sentar. Todas as cadeiras estavam ocupadas. Os que sentados estavam, se olharam, como dissessem “é preciso ceder um lugar, quem o fará?”. Um homem sentado na primeira fileira se levantou e se afastou para um canto. Nada disse. Era claro que não fora impelido por educação ou gentileza. Ela o agradeceu, mas não obteve qualquer resposta.

Estava, enfim, misturada à massa, mas ainda sentia o peso dos olhares sobre si. Sabia que, se pudessem, todos afastariam suas cadeiras para longe. Entristecida, ela abaixou a cabeça. Olhou para as próprias roupas. Estava bonita, mas ninguém percebera. Fechou os olhos. Pode sentir o aroma do perfume que estava usando. Mais um detalhe a ser ignorado. Uma vez mais, quis chorar. Era como se personificasse a morte, ou coisa pior. Sua doença era uma mácula, que inspirava um misto de temor e desprezo. Temor de um dia se ver em tal situação. Desprezo por ela estar ali, mostrando ao mundo sua imagem enferma e incômoda.


“Mamãe, porque a moça não tem cabelos, e está usando esse pano no rosto”, perguntou uma criança sentada algumas fileiras atrás. Ela aguardou por uma resposta. Mas, tudo o que pôde ouvir foi o som da mãe repreendendo a criança, silenciando-a. Sentiu seu sentimento se transformar. Revoltava-se agora com aquela atitude. Seria tão difícil explicar à criança que certas doenças afetam o corpo de forma a debilitá-lo? Por que silenciar, e propagar a ignorância, que já inundava o local? Voltou seu olhar para trás. Explicaria que estava doente, mas que logo ficaria curada. Que não se tratava de nada contagioso, mas sim de uma enfermidade da qual qualquer um podia padecer. Diria que a máscara em seu rosto era para protege-la das impurezas do ar. Esclareceria tanto quanto fosse necessário.

Contudo, ao fazer o movimento voltando-se para trás, percebem que todos, quase que ao mesmo tempo, se encolheram, com repulsa à possibilidade de aproximação. Viu-se, então, desarmada por aquele gesto. Retornou à posição em que estava anteriormente. Baixou a cabeça novamente. Se deu conta de que seria preciso ter forças. Indagou se estaria realmente preparada para lidar com tudo aquilo. Talvez fosse melhor ficar um pouco mais em casa, aguardar o fim do tratamento, e só voltar quando sua aparência já não fosse incômoda. Devia ter dado ouvido aos familiares que tanto pediram para que ela ficasse em casa. Permaneceu envolta em tais pensamentos por alguns minutos.

No entanto, nunca fora afeita a resignação. Não era culpada pela ignorância daquelas pessoas. Não devia simplesmente desistir da vida, para evitar aquele tipo de reação. Não saíra de casa, depois de tanto tempo, para simplesmente fraquejar. Já havia lutado tanto, era preciso vencer mais aquela batalha. De súbito, uma ideia se apossou de sua mente. Antes de pô-la em prática, questionou se não estaria sendo perversa demais. Porém, não devia nada àquelas pessoas, que desde o primeiro olhar, não se preocuparam em poupá-la. Decidiu-se, então. Que a ignorância deles lhes servisse de punição.

Ela então ergueu a cabeça. Olhou para os lados. Levantou-se da cadeira lentamente, simulando fraqueza, embora não a sentisse. Percebeu que a observavam. Ela estava na primeira fileira de cadeiras, de modo que, ao voltar-se para trás, podia ver todos os que ali estavam sentados. Cuidadosamente, tirou a máscara cirúrgica que havia em seu rosto. Os olhares agora estavam apreensivos. Uma vez sem a máscara, sorriu, como se desse a eles uma última chance. Ninguém sorriu de volta. Ela então, utilizando-se de todas as forças, tossiu bem alto, fazendo questão de espalhar o máximo de perdigoto pelo ar.

Era como se houvesse despejado uma bomba no local. Os que sentados estavam, correram depressa em direção à porta de saída. Empurrando-se e acotovelando uns aos outros, tentavam desesperadamente sair da sala, temendo um possível contágio pela doença mortal que devia acometer aquela moça. Uns gritavam por socorro, outros prendiam a respiração. Mesmo quando todos haviam conseguido sair, ela ainda podia ouvir o som vindo de fora, de gente caindo pelas escadas. Contemplou, então, os lugares vazios. Tinha um sorriso de satisfação no rosto. Apanhou a máscara e pôs no rosto novamente.


A tela presa à parede emitiu um sinal, e exibiu o número da senha a ser atendida. Ela olhou a própria senha. Havia cerca de doze números até que o seu fosse chamado. Mas, viu que, sobre uma das cadeiras vazias, um papel com o número chamado fora abandonado. Apanhou o mesmo e entrou na sala de atendimento. Naquele mesmo dia, durante o jantar, seus familiares preocupados, indagaram como havia sido a experiência. Ela se limitou a dizer: “Foi boa. Depois que você aprende a lidar com as pessoas, tudo fica mais fácil”.

segunda-feira, 14 de março de 2016

Nosso anjo

Como que em preces, tinha as pequenas mãos unidas, com os dedinhos entrelaçados. Mas, as súplicas eram todas nossas. O semblante sereno, nos trazia paz e tristeza ao mesmo tempo. Era um anjo. Nosso anjo, que nos deixava, prematuramente. Eis o cerne de toda a dor. E não havia, entre nós, quem não fosse invadido por aquele sentimento de desolação. Mesmo aqueles que não nos eram próximos, se viam tomados pela comiseração. A vida escrevera uma passagem trágica no roteiro, e não havia como estarmos preparados para tal reviravolta.

Impossível olhar seu pequeno rosto, cercado de alvas flores, e não pensar em toda a vida que ele poderia ter tido. Seus brinquedos consigo, sem a vida que os anime. Os primeiros passos, palavras, as descobertas da primeira infância, a janelinha que um dia se abriria em seu sorriso. Tantos sorrisos que já não teremos, já não veremos. Tantas linhas de uma história que, infelizmente, não será escrita.

Entre orações e cânticos, o anseio por alento, não só para as nossas almas, mas para aquela que nos deixou. O clamor em uníssono pelo amparo divino, a união pela dor. Provas de que há, na morte, algo que nos mostra o quão ínfimas são as vicissitudes cotidianas, assim como nossas vaidades. Sempre há muito a aprender. Terá sido esta, talvez, a missão de nosso pequeno anjo? Nos unir e nos dar lições?

Sim, pois muito aprendemos com ele, durante sua breve passagem. Seu apego à vida neste quase um ano, nos mostrou que é preciso lutar até o fim. E não há quem possa dizer que ele não lutou. Mas, infelizmente, não há triunfo em todas as batalhas. E, nesta última, o perdemos.


Ao entregá-lo de volta à terra, derradeiras e inevitáveis lágrimas. Já não o veremos. Residirá, agora, em nossos corações. Guardaremos em nós sua doce lembrança. A recordação de uma vida que agora se resume em saudades. Seu nome entalhado em mármore, e saudades. Eis o que nos resta.


Pierry Silva Guimarães.
25/04/2015 - 13/03/2016



terça-feira, 1 de março de 2016

A vida não segue trilhos

 “A vida não segue trilhos”, a frase ecoou em minha mente, e despertei daquela espécie de transe que só o prazer oferece. Ofegante, eu tinha sob mim o corpo nu daquela moça que eu sequer sabia o nome. Nosso suor era um só, assim como nossos corpos conectados. O pulsar do meu coração, no entanto, era o único que eu conseguia sentir. Foi quando me dei conta que tinha as mãos envoltas no pescoço da moça. Pior ainda, eu apertava forte. Soltei-a em um sobressalto e, já de pé, observei seu corpo imóvel sobre o sofá. “Está morta. Eu a matei.”, pensei. “A vida não segue trilhos”, repeti involuntariamente.

“A vida não segue trilhos”, foi o que ela me disse, enquanto eu me enrolava tentando justificar o porquê de não poder entrar em seu apartamento àquela hora da noite. “Tenho trabalho amanhã, e reunião, compromissos agendados...”, dizia eu, quando ela disparou a frase que me deixaria sem argumentos. Simplesmente calei e a segui porta a dentro. Ela não acendeu as luzes. Mergulhou na penumbra e pediu que eu o fizesse. Tateei por alguns instantes pela parede, até encontrar um interruptor. Pressionei-o e, como num passe de mágica, a luz a fez surgir nua diante de mim. Deitada sobre o sofá, com as pernas cruzadas, escondia de meus olhos o mistério que estava prestes a revelar.

A frase então começou a fazer sentido. Seria o mantra de uma noite que, pela primeira vez em minha vida, era imprevisível. Há duas horas estava eu escolhendo um filme qualquer em uma loja de departamentos, para distrair minha solidão. Agora contemplava, extasiado, aquela linda vagina de pelos descoloridos e levemente arroxeados. Algo me dizia que eu nunca mais veria algo tão exótico em minha vida. Sim, pois minha nova amiga não era exatamente o tipo de pessoa com a qual eu costumava me relacionar. Era ela dessas moças descoladas, de piercings e tatuagens. Dessas cuja ousadia te faz temer e desejar ao mesmo tempo.

- Assiste esse aqui. Vai te fazer bem. - Disse ela enquanto apontava para a capa de um filme que eu não reparei qual era, pois meu olhar não foi capaz de se conter diante da tatuagem de traços delicados que começava em sua mão e serpenteava pelo braço. Encontrei o final do desenho próximo ao ombro da moça, quando me deparei que aqueles olhos em mim.

- Gostou? - Indagou. Não consegui responder nada. Voltei o olhar para o nada, enquanto fingia procurar o filme que ela indicara. A moça deu de ombros e saiu. Ela deu dois passos e, sabe-se lá por qual motivo, eu consegui balbucear algo como “Assiste comigo”.

Ela voltou sorrindo, enquanto eu permaneci imóvel, com a cara de idiota, padrão. Passou por mim, vasculhou por alguns segundos entre os filmes. Apanhou um e disparou:

- Assisto esse. Mas tem que ser na minha casa.

O máximo que consegui fazer foi assentir com a cabeça, num gesto mecânico e involuntário. Dez minutos depois eu subia em um ônibus seguindo para o lado oposto da cidade, junto àquela desconhecida, para ver um filme que eu sequer sabia qual era.

Durante todo o trajeto, ponderei sobre o que estava fazendo, e como diabos havia chegado até ali. Ela respeitou o meu silêncio, contemplando as ruas que passavam pela janela, enquanto fumava um cigarro.

Ao descer do ônibus, eu havia tomado uma decisão. Acompanharia a moça até a porta da casa dela, seja lá onde fosse. Depois daria um jeito de voltar para casa. Já tivera aventura demais por uma noite. Queria voltar para a segurança de minha rotina. E o teria feito, não fosse aquela frase para desarmar minha obstinação.

Todos estes eventos, que haviam me conduzido até ali, passaram diante de meus olhos rapidamente, até que me deparei novamente com o corpo dela estendido sobre o sofá. Ela parecia não respirar. A cada segundo, a certeza de que eu a matara aumentava. Caminhei desesperado de um lado para o outro. Fugir. Polícia. Cadeia. Palavras e ideias que corriam através de meus pensamentos. O que fazer? O desespero me invadia, e eu amaldiçoara o momento em que havia replicado à provocação dela. Tivesse ficado quieto, isso não teria acontecido. Estaria em casa, comendo comida congelada e vendo televisão, como todo bom idiota solitário costuma fazer.

Estava prestes a enlouquecer. Avistei a janela. Pensei em tomar um caminho mais fácil até o piso térreo. Não tive coragem. Fui tomado pela covardia e resolvi fugir. Corri e apanhei minha calça jogada sobre o sofá. Era só me vestir depressa e correr. Ninguém saberia que eu estive ali. Fora uma fatalidade. Eu não queria. Eu nem sabia o nome dela. Eu tremia e vestir a calça era impossível. Sentei no chão, enquanto eu tentava desesperadamente me vestir. Até que ouvi alguém tossir. Minha alma congelou.

Demorei alguns segundos para reunir coragem necessária. Quando consegui, voltei meu olhar em direção ao sofá, senti minha alma escapar junto com o suor. Ela estava voltada para mim, me olhando. Antes que eu pudesse comemorar o milagre, disparou:

- Eu falei para você não apertar muito. Se forçar demais, eu fico sem ar e desmaio. Não é assim que funciona. Você precisa sentir o meu corpo.

Atônito, eu não conseguia dizer nada.

- Vem. Tira essa roupa. Vamos tentar novamente. Eu vou te ensinar. Posso fazer em você. É gostoso.

As coisas então ficaram menos turvas em minha mente. Tudo começara com uma fita que ela envolvera no pescoço, e apertava enquanto eu a penetrava. Aos poucos, lembrei que ela confiou a mim o controle sobre a constrição da fita. Em algum momento, devo ter tirado a fita e resolvido sentir com minhas próprias mãos. O calor, o prazer. Sentir o coração pulsar nas extremidades. Não tive culpa, afinal.

“A vida não segue trilhos, né.”, ela repetiu, cínica, enquanto eu tirava a calça, liberto do desespero. Só voltaria para a minha casa três dias depois. Na semana seguinte, descarrilei de vez e vivemos juntos desde então.




Fonte imagem: https://media.deseretdigital.com/file/d22c751221.jpg?crop=top_0~left_0~width_1000~height_661&resize=width_630~height_417&c=8&a=5bcc9dc1

domingo, 23 de agosto de 2015

O abutre

Ainda resta em mim um pouco de vida, embora boa parte dela já tenha se espalhado pelo chão. Não parece, mas ainda respiro. Uma respiração lenta e leve, sutil demais para ser notada. Mesmo eu, já tenho minhas dúvidas se ainda estou vivo, ou se isso não é o princípio do inferno, para onde eu certamente irei (como se eu acreditasse nessas coisas). Ou então, é apenas o mero delírio louco de minha mente vacilante. Seja como for, meus olhos, mesmo enrubescidos pelo sangue, ainda conseguem ver borrões de imagens. Até quando? Não sei dizer.
Neste mar revolto, que é agora a minha mente, lembranças da infância se alternam com o que eu fiz no dia de hoje. Um frenesi de imagens sem sentido algum. Ana Maria me dá um beijo sob o pé de ameixa. Eu apanho a mochila, abraço minha mãe e saio de casa apressado. A professora chama meu nome e me entrega uma prova que eu certamente não mostrarei para os meus pais. Meu chefe mistura o café e o leite, fazendo aquele barulho insuportável da colher batendo nas laterais da xícara. Esqueço as chaves, e volto ao escritório para apanhá-las. Um homem passa por mim, correndo e gritando.
Eu estou morrendo. Eis minha única crença. O mormaço desagradável do asfalto quente umedecido me sufoca. Ou talvez seja apenas o sangue se inundando os meus pulmões. Talvez eu ainda tenha dois ou três minutos de consciência, antes de que tudo escureça. Moveria meu corpo, para ficar em uma posição menos desconfortável, mas mal tenho forças para respirar. E, porque diabos eu iria querer conforto numa hora dessas? Porque pentear os cabelos antes de encarar o vendaval? Vaidade? Estupidez?
De repente, a lucidez. Enfim lembro o que aconteceu. Eram dois homens. Corriam atrás daquele que por mim passou. Dei azar. Conformaram-se comigo, e deixaram o outro fugir. Queriam meu dinheiro, minha carteira, minha vida. Esta última não puderam levar de mim. Não para si. Então, em um ímpeto egoísta, contentaram-se em simplesmente me privar dela. Soubesse eu que o desfecho seria esse teria, pelo menos, tentado reagir. Mas, nunca tive desses impulsos heroicos. Talvez por um sentimento de autopreservação, que de nada me adiantou, veja você.
Agora me vejo deitado, contando a finitude dos segundos que me restam. Qual o narrador de minha história, em terceira pessoa, vejo quando ele se aproxima de meu corpo. Ele sente o cheiro de morte. Decerto passou a semana esperando por isso. Eis o ápice do seu dia. Seus olhos brilham. Ele se aproxima de minha carcaça vagarosamente. Sabe que ainda estou ali, que meu corpo ainda não jaz sem dono. Ele, então, aguarda. É paciente, como os abutres costumam ser.
À meia noite e doze minutos, dou meu último suspiro. Ele já está ali há pouco mais de sete minutos, contemplando satisfeito o meu agonizar. Senti sua presença desde que chegou. Com cautela, ele se aproxima. Certifica-se de que eu estou morto, e então parte para a ação. É a hora de saciar sua fome. Traz a mão ao bolso de traz da própria calça e apanha sua ferramenta. Debruça-se sobre meu corpo sem pudor. Por segundos, analisa o melhor ângulo. Parte para a ação. A câmera já está acionada. Em poucos segundos, sou fotografado como se minha imagem fosse digna de contemplação.


Ainda ao meu lado, ele confere as imagens que capturou. Inclina o pescoço em alguns momentos. Já não o vejo, mas sou capaz de sentir seus gestos. Ele corre o dedo frenético sobre a tela do aparelho. Está feito. Em alguns minutos, serei visto por milhares, milhões. Ele então parte satisfeito. Sequer olha para trás. Conseguiu o que queria. Serei o assunto da madrugada. Minha morte será comentada exaustivamente, até o próximo ataque seu, ou de outro abutre. Sim, o bando é grande. Multiplicam-se cada vez mais. E, o pior de tudo, aumenta também a sua plateia. Ávidos consumidores da desgraça alheia. Riem, choram, emocionam-se, compadecem-se. Uma verdadeira catarse de bolso. Portátil. Para ser devorada a qualquer momento, por alguns instantes, e depois descartada.

Eu ainda contemplo o que restou de mim, após o ataque do abutre. Ao longe lamento. Sei que sou apenas mais um em seu acervo de mortes. Ele as coleciona. Vangloria-se por tê-las nas memórias. Orgulha-se em compartilhá-las. Indiferente às reações, aos danos, à dignidade das vítimas. Ele apenas deseja estar lá no momento certo, na hora exata. Sedento pela morte alheia. Decerto sonha em ter um final semelhante. Ter atenção total. Maldito seja!


Fonte da imagem: http://wp.clicrbs.com.br/impressaodigital/files/2014/08/photo.jpg

quarta-feira, 20 de maio de 2015

A dança das folhas


Um pássaro cruzava o céu e, sem saber, levava o meu olhar consigo. Mas, a brisa logo passava por mim, fazendo-me fechar os olhos, para sentir seu toque. O cheiro de flor de maracujá. A terra úmida de orvalho sob os meus pés descalços. Não é difícil lembrar essas coisas. Na verdade, sinto como se ainda estivesse lá, e não aqui, em meio a todo esse concreto sufocante. É que parte de mim, inevitavelmente, ainda está presa àquele cenário do passado, que já não existe.

Contemplar o mundo era o meu passatempo favorito, aos nove anos. Não que a vida adulta tenha mudado minha predileção. Apenas já não disponho de tempo para devotar a tão maravilhosa atividade. Claro, em certos momentos, é inevitável. Mesmo hoje, em meio aos passos apressados, cruzando as avenidas da cidade, amiúde entrego minha atenção a algum traço de beleza que atravesse o meu caminho. E não me refiro a mulheres, apenas. Contudo, nada que se compare ao que um dia fui.

Tenho tantas imagens em minha mente, que lamento por não ter o talento necessário para externá-las em papel e aquarela. No entanto, creio que, dentre tudo o que vi, e que até o fim de minha vida verei, não há algo que se compare ao que meus olhos testemunharam naquela tarde de fim de março. Algo único, que sobrevive em minhas memórias somente. Tanto que, não raro, em sonhos volto àquele cenário. Os sons, as cores, o misto de medo e excitação.

Enfim, acredito já haver atiçado o suficiente sua curiosidade. Maldade seria, agora, não compartilhar contigo minha experiência. Então, contar-lhe-ei o que vi e vivi naquela tarde. É possível que o relato não seja tão fiel quanto deveria. É que, com o passar do tempo, as cores ficam desbotadas, inevitavelmente. Mas, a essência persiste. Não espere um final surpreendente, nem nada do tipo. Apenas escrevo tais linhas para evitar que o que vi morra comigo. Não me julgue.

Já haviam se passado duas horas desde o almoço. O trabalho recomeçara. Minha mãe estendia roupas no varal, enquanto meu pai terminava de consertar a cerca, quebrada na noite anterior por uma novilha que fugira. Não preciso dizer que ele não estava muito satisfeito com tal atividade. Em seu cronograma mental, planejara um reparo no telhado do curral. Havia duas ou três vacas prenhes, que dariam a luz em algumas semanas. Além do que, era preciso fazer preparativos para a estação chuvosa.

Do alto, o sol cumpria bem o seu papel. Mas, meu pai usaria seu chapéu independente disso. Pelo simples prazer do costume. Apesar do calor, minha mãe não se queixava. Gostava de ver como as roupas secavam depressa. Naquela tarde, eu a ajudava segurando os prendedores. Ela estendia a roupa e voltava-se a mim para pegar um, sempre me presenteando com um sorriso doce. Como era linda a minha mãe. Meu pai era um homem de sorte.

As horas da tarde haviam avançado e o sol já se preparava para ir deitar. O cesto de roupas já estava vazio. Já não havia nenhum prendedor em minhas mãos. Meu pai, contudo, seguia em seu trabalho. Não raro ele avançava pelo começo da noite. Era desses homens que detestam deixar algo pela metade. E, a julgar pelo tanto que ainda havia a ser feito, ele demoraria ainda algumas horas até acabar o reparo. Certamente estaria amaldiçoando a novilha fujona, por tê-lo feito começado tarde.

Caminhávamos em direção à varanda de casa, quando o vento passou por nós apressado, assoviando. Atravessou o terreiro e passou por meu pai, quase levando o seu chapéu. Depois, ficou no descampado, girando desorientado, sem saber para onde ir.

- Olha lá, meu filho, a dança das folhas. - Disse mamãe apontando o dedo.

Voltei o olhar para onde estava o vento, e vi as folhas secas, que antes descansavam deitadas, volteando sobre a terra, uma atrás da outra, em impressionante sincronia, como se dançassem quadrilha junina. O vento ditava o ritmo, e elas obedeciam, bailando satisfeitas. Algumas, de tão velhas, já se desfaziam em meio à festa. Era a derradeira glória. O último sopro de vida aos seus corpos moribundos.

O enlevo que me tomou não pode ser descrito. Era algo realmente belo, digno de ser contemplado. Imerso naquele espetáculo, desliguei-me completamente do mundo. Tanto, que sequer me dei conta do que acontecia. Parecia tão natural que a coreografia se tornasse mais complexa, que o ritmo acelerasse gradativamente. Porém, quando minha mãe avançou sobre mim, jogando-nos ao chão, tentando me proteger, despertei. Com as mãos, ela tentava tapar meus olhos e ouvidos.

- Não olhe para lá. Concentre-se na minha voz. Vai ficar tudo bem. – Disse e, em seguida, começou a cantar baixinho em meu ouvido, tentando desviar minha atenção.

Apesar de todos os seus esforços, eu podia ouvir o som do vento rosnando enfurecido. Sem muito esforço, consegui livrar meus olhos do abraço protetor. Contemplei o mais belo espetáculo de todos. Uma orquestra regida pelo vento tocava um misto de sons: madeira estalando, metal retorcendo, telhas e tijolos se quebrando. Tudo isso tendo como base o som pesado do vento. As folhas acompanhavam a canção em seu balé frenético, rodopiando pelo ar, descendo ao chão para fazer um gracejo e depois voltando ao ar novamente. Mas, já não estavam sozinhas. Bailavam agora acompanhadas de pedaços de telha, galhos secos. Até as roupas que mamãe deixara no varal, haviam entrado na dança. E se divertiam, sem se importar se estavam se sujando novamente.





Eis a última imagem que tenho na mente. Depois disso, lembro de ver minha mãe me acordando e me apertando contra o peito em prantos. Parecia aliviada. O lugar estava irreconhecível. Todos indagavam como teríamos sobrevivido. A casa, os animais, tudo havia desaparecido. Não mais vi meu pai. O corpo dele nunca foi encontrado. Durante muitos anos, me convenci de que ele havia seguido a trupe das folhas. Decerto se encantara também pelo espetáculo. Eu o invejava.

A vida nos obrigou a vir para a cidade, e abandonar meu paraíso da infância. Jamais voltei lá. Mas, ainda tenho viva em minha mente a lembrança dos anos que ali vivi. Se fecho os olhos, sou capaz de ver a pequena casa, minha mãe estendendo as roupas no varal, meu pai consertando alguma coisa com seu chapéu na cabeça. Temo, é verdade, que os anos roubem essas lembranças de mim, um dia. Mas, tenho certeza que não há nada que me faça esquecer o que vi naquela tarde de março. Nada será capaz de me fazer esquecer a dança das folhas.




Fonte imagem:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjaqHvJTqYGodcbYyOkO7SrExv96D6Ghp4qRdxnyR2A3KwhYAc7K52IjH2YnyD-cpM1XCvgysw23GlmAoYcBRug0iUWU4O_J6PTBbC3YCfktjflJ928-IW7KScpFTuXEw8o7JrB89WOVbWH/s1600/folhas+ao+vento.jpg