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sábado, 11 de junho de 2016

A mácula

Nem mesmo a beleza da blusa de seda, cuidadosamente escolhida e passada, tampouco o colar de pedras delicadas, foram o bastante para apaziguar a energia dos olhares que lhe foram lançados, quando adentrou à sala de espera. Cadeiras voltadas em direção à porta, faziam de quem entrava, uma espécie de distração aos olhos cansados de esperar. Mas ela, embora não os visse todos, pode sentir a mudança nos olhares, quando caíram sobre sua figura. Alguns franziam a testa, outros desviavam o olhar, havia ainda alguns que simplesmente a encaravam. Seja qual fosse a reação, ela sabia que os pensamentos eram similares. Estavam todos desconfortáveis com sua presença.

Era a primeira vez, desde a reviravolta, que saía de casa para tratar de assuntos que não envolviam a própria saúde. A despeito de toda a relutância da família, insistira. Era aquele o primeiro passo de um recomeço. Devotara toda a manhã à escolha da roupa com a qual sairia, o batom que daria brilho aos empalidecidos lábios, os sapatos, a bolsa. Enfim dava voz à vaidade, da qual tivera que abrir mão, nos últimos meses. Era jovem e bela, embora a enfermidade houvesse embotado estas características. Mas, estava vencendo. O tratamento se aproximava do fim, a vida retomaria seu curso. Daí o porquê de seu entusiasmo.

Contudo, ao ser friamente fuzilada por aqueles olhos, percebeu que haveria um caminho mais longo a percorrer. Era como se todos fizessem questão de transparecer que sua figura lhes era incômoda. Quis chorar, correr, sair dali. Mas, resistiu. Não saberia explicar de onde tirou forças. Apanhou uma senha, e voltou o olhar procurando um lugar para sentar. Todas as cadeiras estavam ocupadas. Os que sentados estavam, se olharam, como dissessem “é preciso ceder um lugar, quem o fará?”. Um homem sentado na primeira fileira se levantou e se afastou para um canto. Nada disse. Era claro que não fora impelido por educação ou gentileza. Ela o agradeceu, mas não obteve qualquer resposta.

Estava, enfim, misturada à massa, mas ainda sentia o peso dos olhares sobre si. Sabia que, se pudessem, todos afastariam suas cadeiras para longe. Entristecida, ela abaixou a cabeça. Olhou para as próprias roupas. Estava bonita, mas ninguém percebera. Fechou os olhos. Pode sentir o aroma do perfume que estava usando. Mais um detalhe a ser ignorado. Uma vez mais, quis chorar. Era como se personificasse a morte, ou coisa pior. Sua doença era uma mácula, que inspirava um misto de temor e desprezo. Temor de um dia se ver em tal situação. Desprezo por ela estar ali, mostrando ao mundo sua imagem enferma e incômoda.


“Mamãe, porque a moça não tem cabelos, e está usando esse pano no rosto”, perguntou uma criança sentada algumas fileiras atrás. Ela aguardou por uma resposta. Mas, tudo o que pôde ouvir foi o som da mãe repreendendo a criança, silenciando-a. Sentiu seu sentimento se transformar. Revoltava-se agora com aquela atitude. Seria tão difícil explicar à criança que certas doenças afetam o corpo de forma a debilitá-lo? Por que silenciar, e propagar a ignorância, que já inundava o local? Voltou seu olhar para trás. Explicaria que estava doente, mas que logo ficaria curada. Que não se tratava de nada contagioso, mas sim de uma enfermidade da qual qualquer um podia padecer. Diria que a máscara em seu rosto era para protege-la das impurezas do ar. Esclareceria tanto quanto fosse necessário.

Contudo, ao fazer o movimento voltando-se para trás, percebem que todos, quase que ao mesmo tempo, se encolheram, com repulsa à possibilidade de aproximação. Viu-se, então, desarmada por aquele gesto. Retornou à posição em que estava anteriormente. Baixou a cabeça novamente. Se deu conta de que seria preciso ter forças. Indagou se estaria realmente preparada para lidar com tudo aquilo. Talvez fosse melhor ficar um pouco mais em casa, aguardar o fim do tratamento, e só voltar quando sua aparência já não fosse incômoda. Devia ter dado ouvido aos familiares que tanto pediram para que ela ficasse em casa. Permaneceu envolta em tais pensamentos por alguns minutos.

No entanto, nunca fora afeita a resignação. Não era culpada pela ignorância daquelas pessoas. Não devia simplesmente desistir da vida, para evitar aquele tipo de reação. Não saíra de casa, depois de tanto tempo, para simplesmente fraquejar. Já havia lutado tanto, era preciso vencer mais aquela batalha. De súbito, uma ideia se apossou de sua mente. Antes de pô-la em prática, questionou se não estaria sendo perversa demais. Porém, não devia nada àquelas pessoas, que desde o primeiro olhar, não se preocuparam em poupá-la. Decidiu-se, então. Que a ignorância deles lhes servisse de punição.

Ela então ergueu a cabeça. Olhou para os lados. Levantou-se da cadeira lentamente, simulando fraqueza, embora não a sentisse. Percebeu que a observavam. Ela estava na primeira fileira de cadeiras, de modo que, ao voltar-se para trás, podia ver todos os que ali estavam sentados. Cuidadosamente, tirou a máscara cirúrgica que havia em seu rosto. Os olhares agora estavam apreensivos. Uma vez sem a máscara, sorriu, como se desse a eles uma última chance. Ninguém sorriu de volta. Ela então, utilizando-se de todas as forças, tossiu bem alto, fazendo questão de espalhar o máximo de perdigoto pelo ar.

Era como se houvesse despejado uma bomba no local. Os que sentados estavam, correram depressa em direção à porta de saída. Empurrando-se e acotovelando uns aos outros, tentavam desesperadamente sair da sala, temendo um possível contágio pela doença mortal que devia acometer aquela moça. Uns gritavam por socorro, outros prendiam a respiração. Mesmo quando todos haviam conseguido sair, ela ainda podia ouvir o som vindo de fora, de gente caindo pelas escadas. Contemplou, então, os lugares vazios. Tinha um sorriso de satisfação no rosto. Apanhou a máscara e pôs no rosto novamente.


A tela presa à parede emitiu um sinal, e exibiu o número da senha a ser atendida. Ela olhou a própria senha. Havia cerca de doze números até que o seu fosse chamado. Mas, viu que, sobre uma das cadeiras vazias, um papel com o número chamado fora abandonado. Apanhou o mesmo e entrou na sala de atendimento. Naquele mesmo dia, durante o jantar, seus familiares preocupados, indagaram como havia sido a experiência. Ela se limitou a dizer: “Foi boa. Depois que você aprende a lidar com as pessoas, tudo fica mais fácil”.

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