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sexta-feira, 4 de novembro de 2016

O Desfecho

“Por que isso está acontecendo comigo? ”, indagava a si mesmo desesperado, enquanto andava em círculos, tentando, em vão, pensar. Queria chorar, mas o desespero era tal que nem mesmo as lágrimas queriam presenciar. Soltava gritos abafados, grunhidos, batia a cabeça na parede. Teria acordado a casa inteira, não estivesse sozinho. “O que o meu pai faria? ”. Como se uma luz pairasse sobre si, de súbito parou. Encheu um copo com água, tomando-o em seguida com a avidez daquele que bebe um antídoto ao saber que possui veneno correndo por suas veias. Puxou uma cadeira. Observou-a por alguns segundos. Sentou-se, por fim. 

Respirou fundo. Passou a mão nos cabelos desgrenhados. Apanhou um pedaço de papel e uma caneta para tentar organizar os pensamentos. Mas, embora mais calmo, ainda tremia. Decidiu repassar tudo mentalmente. Fechou os olhos, para se isolar na própria mente. Pôs-se a descrever em voz alta para si mesmo: “Deixei meus pais no aeroporto. Fui dar uma volta no carro novo. Tomei algumas cervejas. Voltei para casa. Atrope...”, sua voz engatou. Quis chorar. Respirou novamente. Engoliu a seco. Continuou: “Atropelei uma pessoa. Fugi o mais rápido que pude. ” 

Ficou em silêncio por alguns instantes, repassando os fatos que acabara de listar. De repente, levantou e correu até a garagem. Acendeu a luz e caminhou para a frente do carro. Observou calmamente, avaliando os danos. Inexplicavelmente, havia apenas um leve arranhão, quase imperceptível. Alguns respingos de sangue. Mais abaixo, algo que lhe causou um calafrio jamais sentido: uma mecha de cabelos loiros estava presa em um vão de encaixe do para-choque. Lembrava agora: a mulher estava de costas, o impacto a jogara para baixo do carro. Por isso aquele vestígio. Logo concluiu: era preciso se livrar de qualquer coisa que o pudesse incriminar. 

Apanhou a mangueira e um esfregão e foi limpando, como podia, os vestígios de sangue. Cuidadosamente, esfregou cada centímetro do para-choque do carro. No entanto, mesmo com muito esforço, não conseguia desprender aquela mecha de cabelos loiros. Forçou o jato de água na direção, passou o esfregão diversas vezes. Por fim, aceitou que teria de retirá-la com as mãos. Procurou por luvas, mas não encontrou nenhuma. Conformou-se em pôr uma das mãos dentro de uma sacola plástica. Apanhou um punhado de fios e puxou, mas os cabelos molhados escorregaram através do plástico liso. 

O desespero começou a lhe invadir novamente. “Por que não sai? ”, falava com a voz embargada. Desistiu. Foi até a cozinha e apanhou uma faca. Cortou uma parte dos cabelos. Mas, embora encurtados, eles ainda estavam ali, destacavam-se na cor preta do para-choque. Quis arrancá-los, mas escorregavam ainda mais, agora que estavam curtos. “Por que diabos você cortou, seu estúpido? ”. Ajoelhou. Tentou novamente. Relutou, mesmo sabendo que teria que usar as próprias mãos, sem proteção alguma, se quisesse tirar aquela derradeira prova de seu crime. 

Respirou fundo. Tirou a sacola da mão trêmula. Agarrou o que pôde dos cabelos e tentou puxar. Faltaram-lhe forças. Quis vomitar. Aspirou o ar com força. Apanhou com a ponta dos dedos uma porção dos fios dourados e puxou para si. Era o ângulo exato para desengatar. A mecha se soltou, enfim. Quis sorrir, mas, para a sua surpresa, as raízes dos fios ainda estavam presas ao seu pedaço de carne originário. Diante de seus olhos, oscilou, como um pêndulo macabro, aquela parcela de couro cabeludo, exalando ainda cheiro o de sangue. Tão forte quanto pôde, ele atirou longe o naco de pele, e vomitou tudo o que havia em seu estômago. Quando terminou, olhou para o carro. Aparentemente intacto, não dava qualquer mostra do que havia acontecido. Respirou aliviado. 

Caminhou até a cozinha. Parou no corredor. O coração disparou novamente. “O GPS do carro tem o registro do horário e do caminho que fiz. Preciso apagar tudo”. Correu de volta até o carro. A mão trêmula acionou o GPS do veículo. O sistema era novo. Ele ainda não sabia usar. Procurou pelas configurações. “Registros”. “Rotas recentes”. “Apagar rotas recentes”. “Você tem certeza? ”, indagou o aparelho. “Sim! Pelo amor de Deus! ”. “Registro de rotas recentes apagado”. Um peso parecia ter saído de seus ombros. Pousou a cabeça no encosto do banco. Quis se desesperar ao pensar que alguma câmera de segurança poderia ter registrado o ocorrido, mas lembrou que era madrugada, não havia movimento na rua, e o local do acidente não era residencial, apenas uma estrada erma. Respirou novamente. “Jamais descobrirão”. Enquanto repetia para si, adormeceu. 


Acordou com um gosto amargo na boca, e um desconforto no corpo. Saiu do carro e olhou novamente a dianteira do veículo. Estava intacta, de modo que chegou a cogitar se tudo não passara de um pesadelo. Contudo, enquanto caminhava até a porta, seu olhar, que displicentemente varria o chão da garagem, parou exatamente no lugar onde repousava um pedaço escurecido de carne de onde brotavam fios loiros brilhantes. Despertou de vez. Apanhou no chão a sacola, que outrora fizera as vezes de luva, juntou a pútrida evidência e amarrou o recipiente. Atirou a ao lixo, por fim, ciente de que aquela última aresta restava aparada. 

O sol brilhava através da janela. Tomou um banho e se sentiu renovado. Foi até a cozinha comer alguma coisa. Ligou a televisão. Enquanto passava geleia em um pão, o jornal da manhã noticiou: “Uma mulher foi atropelada nesta madrugada. Morreu na hora. A despeito do local onde o crime aconteceu e da falta de testemunhas, a polícia pode chegar até um suspeito. Segundo informações, a poucos metros do corpo, foi encontrada a placa de um veículo com vestígios de sangue. A perícia tenta agora identificar se o sangue na placa pertence à vítima. Caso haja a confirmação, será possível identificar o autor do crime. ” 

Atônito, ele largou o que tinha nas mãos. O desespero da noite passada invadiu-o de todo. Ele voltou até a garagem novamente. Parou diante do veículo, mas tinha os olhos fechados. Não queria olhar. Permaneceu por vários minutos ali, parado, criando coragem para encarar os fatos. Por fim, abriu os olhos com cuidado. O borrão preto foi ficando cada vez mais nítido, até que, com os olhos completamente abertos, ele recebeu o golpe: não havia placa alguma. Emudeceu. Chorou. Estava perdido. Iria preso. Seus planos, seus sonhos, tudo perdido. 

“Por que eu não fiz o que meu pai mandou e vim direto para casa? Por que isso está acontecendo comigo? Eu não posso ir preso. Eu tenho apenas 19 anos. Por que? Por que? ”. 

Horas de agonia se passaram. Ele caminhava em círculos dento da casa. A cada minuto, ia até a janela e observava o movimento da rua. “A polícia vai chegar a qualquer momento”, pensava. Abriu uma garrafa de uísque do pai. Quis tomar tudo em um só gole. Queria fugir. Seria pior quando o encontrassem. Era uma decepção para a família. O que seus pais diriam? Logo o resultado da perícia iria confirmar que ele era o assassino. Viriam direto até a sua casa. Estava perdido. Precisava fazer alguma coisa. Mas o que? 

O dia passara depressa. Começava a escurecer. Ele já não conseguia ver toda a movimentação da rua. Logo a casa estaria cercada. A polícia estava prestes a chegar. Quis ligar para o pai, pedir socorro. “O que meu pai faria? ”. Dessa vez não funcionou. O pai jamais teria cometido um erro daquele tipo. Ele agora chorava. Analisou como pode as possibilidades. Concluiu, por fim, que só havia um desfecho aceitável. Foi até a cozinha. Apanhou uma faca. Aproximou-a do pescoço. Faltou-lhe coragem. Queria morrer. Mas não era capaz. Subitamente, parou. Tivera a derradeira ideia. Caminhou até a garagem. Entrou no carro. Ligou o veículo. Pensou em fugir. Mas ali permaneceu. Passados alguns minutos, sentiu-se cansado. Uma sonolência lhe tomou. Adormeceu. Jamais despertou. 

Dias depois, o jornal local noticiou: 

Estudante é encontrado morto na garagem da própria casa. Aparentemente, o jovem chegou bêbado em casa e acabou adormecendo na garagem com o veículo ligado. Faleceu asfixiado pela ingestão de monóxido de carbono, um dos resíduos da queima do combustível. A polícia descarta a hipótese de suicídio. Dizem tratar-se de uma fatalidade. A família está inconsolável. O veículo, comprado no dia anterior à morte do jovem, seria seu presente de aniversário. Sequer havia sido emplacado. 

A notícia subsequente foi: 

A polícia arquivou as investigações do caso da mulher atropelada dias atrás. Após a perícia concluir que o sangue na placa encontrada próxima ao corpo era de um cachorro, e que a placa pertencia a um veículo da prefeitura, que não fora utilizado na noite do acidente, a principal linha de investigações foi descartada. A ausência de câmeras de vigilância ou qualquer testemunha ocular foi determinante para o arquivamento. Infelizmente, mesmo com toda a tecnologia, estes tipos de casos ainda são quase impossíveis de serem solucionados.



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