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quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Agramatical

Domingo a noite. Com o controle remoto na mão, ele passeia compulsivamente pelos canais incontáveis da tv por assinatura. Ela se distrai com uma revista semanal qualquer sobre a vida alheia. Uma janela aberta deixa entrar a brisa fria da noite. Ela então larga a revista e pede:

- Me abraça, amor. Tá frio.

- Abraça-me. Assim é o correto. - Responde ele automaticamente, sem tirar os olhos da tv.

- Ah, tanto faz.

- Tanto faz não. Pede do modo correto, que eu vou.

- Deixa de ser chato e vem logo.

- Chato? Como assim? Eu estou querendo te ajudar. Você sabe que não vai aprender se não praticar. - Diz voltando-se a ela, já com a tv desligada.

- É sério que você vai querer insistir nisso?

- Vou.

- Amor, é domingo. Me deixa.

- Fez de novo. O certo é deixe-me.

- Esquece isso, vai. Não quero brigar com você.

- Esquecer? Você sabe que “isso” faz parte da minha vida. Afinal, de que adianta ensinar a gramática da nossa língua para outros, e deixar você, minha esposa, na ignorância?

- Como é? Ignorante? Você acha que eu sou ignorante?

- Não, amor...

- Nada de “não amor”. Eu ouvi muito bem. Você me chamou de ignorante.

- Não no sentido pejorativo, por favor. Digo ignorante no sentido de desconhecer, não ter a informação.

- Ah, quer dizer que isso agora é um problema pra você? Agora minha ignorância incomoda, é isso?

- Não, não. Por favor, você não está entendendo.

- Claro que não. Eu sou ignorante, esqueceu? Espera que eu vou alí buscar um papel pra você desenhar, que aí eu vou entender.

- Calma. Vamos esquecer isso, ok?

- Não. Nada de esquecer. Quero saber: desde quando minha ignorância passou a ser um problema pra você?

- Não existe isso de...

- Bora? Quero saber. No início não tinha nada disso. Você nunca se incomodou, dizia até que achava interessante a nossa relação, que era difícil existir um casal como a gente.

- Mas eu ainda acho. Nada mudou.

- Mudou sim. Agora até o modo como eu falo te incomoda. Seu estúpido.

- Quer saber? Incomoda sim. Para falar a verdade, é o seu maior defeito.

- Ah...é?

- É sim! Você sabe que eu me importo com isso e nunca tentou melhorar.

- Então quer dizer que isso é realmente muito importante para você?

- É claro que sim.

- Então, posso te fazer uma pergunta?

- Faz.

- Porque quando a gente tá transando e eu falo: “Vai amor! Me come! Me come!”, você nunca se irritou?

- Ante o golpe inesperado, ele silencia. Tenta obter um resposta qualquer. “Tudo depende do contexto...”, diria. Mas, lembra de como ela sabe extamente o que dizer na hora do amor. O sexo é algo agramatical, por assim dizer. Enfim, não havia como argumentar.

- Viu só? Não é tão importante assim. Agora cala a boca e vem me abraçar.


- Perdida a discussão, só resta a ele acatar a ordem da companheira. Cinco minutos depois, os dois fazem amor, sem regras ou normas regendo o que é dito, sussurrado ou gemido. O assunto nunca mais será alvo de discussão entre o casal, exceto em ocasiões estratégicas, onde funcionará como uma espécie de afrodisíaco.


Fonte imagem: http://revistashape.uol.com.br/images/stories/antigo/CasalCamaMat.jpg

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