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sexta-feira, 14 de novembro de 2014

A engrenagem

Acorda cedo todos os dias, desde sempre. Despede-se do calor da cama e de quem sobre ela estiver, e segue. Passa pelo banheiro, a higiene o obriga. Mas, apressado demais para encarar o espelho e perceber as marcas que o tempo imprime em seu rosto. A roupa escolhida na noite anterior já o aguarda. Veste-a mecanicamente, sem reparar seus detalhes ou atrativos. Apanha o que precisa pelo meio do caminho, enquanto, sobre a mesa, o café fumegante o aguarda. Aspira-o no caminho até o carro. Sai de casa sem olhar para trás. Já não recorda a cor da fachada. Eis sua rotina.

O caminho costumeiro não o surpreende. Por isso não desperdiça o olhar com a paisagem. A velocidade é sua melhor amiga nessas horas, mas é preciso se render às convenções, evitar as sanções. Comemora a cada sinal verde. Agoniza nos segundos em que é preciso esperar. Engarrafamentos tirar-lhe-iam a vida. Por isso acorda cedo, desde sempre. O rádio ligado lembrá-lo-ia que deve escutar música de vez em quando, mas está com o volume reduzido demais para ser ouvido. Ele o mantém ligado apenas para se convencer de que não passa de uma inutilidade.

Enquanto aguarda o sinal, deixa o olhar se distrair com os rostos que atravessam a rua. Dentre eles, encontra uma conhecida. Alguém do passado, mas não recorda qual parte dele. Talvez tenham sido colegas de colégio ou faculdade. Poderá ter sido, ainda, seu primeiro amor – esquecido. O sinal abre e ele tem que seguir em frente, não possui tempo para a nostalgia. O relógio em seu braço, seu carrasco, o adverte que o tempo não parou enquanto ele divagava. É preciso ter mais pressa. Segue rasgando ruas e arrancando insultos da boca de motoristas e pedestres. Por fim, chega ao destino.

Adentra o escritório e caminha em silêncio até sua conhecida mesa. À sua mente, vem a lembrança de alguém dizendo que, em outros tempos, as pessoas costumavam dar “bom dia” e sorrir ao chegar. Tempos remotos esses então. Desde sempre este silêncio funesto habitou aquele ambiente. Muito trabalho o aguarda, e a ele se entrega de corpo apenas, pois não é desses que crê na existência de alma. Produto de seu tempo, como todos os demais que o cercam, ele escolhe suas crenças, que quase inexistem. A única que recorda é o trabalho, que enobrece, dignifica e ocupa. Por isso é tão ocupado, é sua forma de ser digno e nobre.

O dia avança e ainda há muito a ser feito. Almoça, como sempre, em sua mesa, oscilando entre garfadas e parágrafos escritos. “É salutar ter intervalos”, dizem-lhe. “Não desejo ser saudável, apenas eficiente”, responde para si mesmo. Eis outra de suas crenças, talvez a maior: se haverá de perecer de qualquer modo, porque adiar o inevitável?

O telefone toca e ele logo atende. A voz desconhecida o faz desconfiar que o assunto não diz respeito ao trabalho. Algo lhe diz que é alguém conhecido, as numerosas chamadas não atendidas ao celular não surgiram ao acaso, afinal. Pensa em dispensar seu interlocutor, no entanto, antes que possa, ele lhe diz que é assunto importante. Permanece na linha, duvidando que o seja, de fato. “Sinto informar, mas sua mãe faleceu ontem pela manhã. O funeral será hoje à tarde.”, informa a voz com pesar. Atônito ele fica, mas consegue responder alguma coisa antes de desligar. 

Mal põe o gancho no lugar e o telefone toca novamente. Em gesto mecânico, atende, mesmo sem desejar falar com ninguém. Do outro lado da linha, seu chefe indaga sobre um trabalho que deveria estar feito. Lembra-se que ainda não o concluiu. Pede desculpas e desliga o telefone. Entrega-se à tarefa devida. Sem ter tempo para sentir a dor, ignora o golpe recebido e volta à luta, mesmo sangrando. Ninguém sabe o que aconteceu. Não desejam saber. Estão ocupados demais com as próprias vidas. Expor seu sofrer denotaria fraqueza. Não o faz. Tenta sufocar a dor, enquanto, por dentro, ela o mata. 

Embora não perceba, fora condicionado a esta realidade, não é culpado pelo que se tornou. A pós-modernidade tem seus ônus. “Trabalhar é preciso, viver não”, diria o poeta, se vivesse nestes tempos. O homem, cujo coração agoniza silencioso enquanto a mente trabalha incessante, já não reconhece sua essência, é mera engrenagem nesse complexo mecanismo que se tornou a vida. Faz parte de algo maior que suas aspirações, problemas. Dele depende o funcionamento de tudo, é o que o ensinaram desde cedo. Eis o pensamento que o faz esconder de si, nos confins de sua mente, a dor que ainda o fustiga. 


É chegada a noite e ele deixa o escritório. Sua hora de trabalho deu-se por encerrada horas atrás. “Era preciso adiantar algumas coisas, resolver pendências”, eis sua justificativa para o mundo e para quem perguntar o porquê de não ter comparecido ao funeral. Segue o caminho de volta para casa. A música que vem da rua o faz perceber que é sexta-feira. Planejaria o que adiantar neste fim de semana vindouro. Contudo, um carro avança o sinal. A alta velocidade eleva as proporções do impacto. O vidro estoura e o metal se retorce diante de seus olhos. Tenta pensar, mas já não pode. A vida o abandona, pois cansada está de sua extenuante rotina. Solitário, ele morre por não ter tido tempo de viver.



Fonte imagem: http://thumbs.dreamstime.com/x/rob-que-empurra-engrenagem-23119267.jpg

Um comentário:

  1. Fazia tempo que não gostava tanto de texto, não sei se digo Parabéns ou obrigado.

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