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quarta-feira, 4 de abril de 2012

(Re)começo

     Sorrateira, sentou-se ao meu lado. A despeito de seu silêncio, o perfume denunciou sua presença. A discrição conteve meu ímpeto de olhá-la de súbito. Mas pouco resisti, após alguns segundos, lá estava eu a admirá-la em silêncio. Passou a mão pelos cabelos. Pediu uma bebida. Sabia ser possuidora de meu olhar naquele instante. Aproveitando-se disso, dardejou-me um olhar inesperado. Confesso que tremi, mas tentei parecer firme. Ela me manteve em sua mira. Parecia esperar por algo. Esconderam-se as palavras. Restou-me apenas um tímido ‘oi’. Era o suficiente.
     Principiamos uma conversa, daquelas despretensiosas, mas cheias de intenções. Para ajudar na fluidez da prosa, pedi um uísque. Algo que eu jamais provara. Contudo, eu estava com sorte. A ardência do primeiro gole converteu-se em uma vermelhidão instantânea em meu rosto, o que denunciou minha inexperiência com o álcool, mas também furtou algumas risadas de minha parceira. Embora desconcertado, encarei aquilo como um bom sinal. Pedi outra dose. A conversa prosseguiu.
     A priori, pensei em não falar muito sobre mim. Confiava na teoria de que ‘elas sempre tem mais a dizer’. Contudo, ela era tão simpática, que não envolver-me pareceu impossível. Muito me disse sobre si, suas preferências, seus desejos. A cada minuto parecia mais preso ao encanto daquela desconhecia. Era incrível como ela possuía tudo o que eu há muito buscava. Além do que, meus olhos pareciam apaixonados por aquele rosto. Insistiam em permanecer presos àquela visão.
     As horas passaram por mim, que fixado na conversa, não percebi que a madrugada chegava. Devo reconhecer que as doses de uísque contribuíram um pouco para que a noção de tempo se perdesse em mim. Contudo, ela estava atenta. Disse-me que era tarde, que precisaria ir. Convidou-me para acompanhá-la, terminar a conversa em outro lugar. Discordar era impossível. Mesmo porque, o torpor da embriaguês já se apoderava de mim. Sabemos bem como as pessoas ficam suscetíveis quando excedem seus limites. Meu caso era bem mais delicado, eu sequer sabia possuir um limite até então.
     Combinamos que a conversa teria prosseguimento na casa dela. Como ela não me deixou dirigir, seguimos em seu carro. Durante o caminho, trocamos algumas palavras. Porém, ao chegarmos a casa, nada mais foi dito. Toda a formalidade do diálogo deu lugar às intenções, que durante toda a noite estiveram escondidas em nossas palavras, olhares. Surpreendia-me a cada instante. Ela me beijava, acariciava-me como se já me conhecesse, se soubesse exatamente minhas preferências. Sonhei, mesmo antes de dormir.
     Despertei em um quarto que, embora não fosse o meu, me parecia bastante familiar. Ouvi passos no corredor. Uma voz de criança. Vesti-me apressadamente. Fui até a porta e não ouvi mais nada. Abri-a se segui pelo corredor que parecia levar ás demais dependências da casa. Haviam quadros fixados às paredes. Observei cada um enquanto seguia com cautela. Eram-me familiares, mas não sabia dizer de onde. Após alguns metros, nas paredes não havia mais quadros, mas sim fotografias.
     Observei-as. Eram fotos da moça que eu conhecera noite passada. Em algumas ela estava sorrindo. Em outras parecia mais séria. Em algumas ela estava abraçada a uma criança. Estava a poucos passos do que parecia ser a sala da casa. Restava apenas mais uma fotografia a ser vista. Passei por ela com calma. Parei a sua frente e a olhei. O choque foi inevitável: na imagem estava a moça abraçada a mim e ao menino das fotos anteriores. Sorríamos. Parecíamos felizes. Mas, como aquilo era possível? Desesperei-me.
     No entanto, antes que pudesse esboçar qualquer reação. Senti quando alguém me abraçou por trás. A julgar pelo abraço à altura da minha cintura, presumi que era uma criança, ou alguém muito baixo. Olhei e vi que era o menino da foto. “Bom dia papai, que bom que você voltou!” sorriu para mim. Fiquei estático. Nada entendi. Ela então surgiu ao fim do corredor. Percebendo meu nervosismo, veio até mim e tentou me acalmar com um abraço. Mas parecia impossível, a necessidade de compreender tudo aquilo me corroia. Coração acelerado, respiração difícil, porque tudo aquilo? Desmaiei.
     Acordei no mesmo quarto familiar de antes. Não estava sozinho desta vez. Sentada à cama a moça acariciava meu rosto. Pensei em fugir, mas meu corpo pesava. Ela então apanhou um álbum de fotografias. Com lágrimas no olhar, começou a mostrar-me fotos nossas. Algumas imagens mostravam o que parecia ser nosso casamento. Outras a gravidez, os primeiros anos do filho que parecia ser nosso. Aquilo tudo me confundiu ainda mais. Percebendo que eu nada entendia, decidiu falar-me:
     “Somos casados há oito anos. Aquele menino é nosso filho, tem seis anos. Sei que não recordas de nada, mas não é sua culpa. Há um ano você sofreu um acidente no trabalho. Aparentemente, nada grave lhe acontecera. Todos disseram ser um milagre, dadas as circunstâncias do fato. Viestes para casa e a nossa vida seguiria. Porém, após algumas semanas, começastes a ter alguns lapsos de memória, nada que suscitasse grandes preocupações. Tinhas dificuldades para lembrar nomes, lugares.
     Contudo, com o passar dos meses vi as coisas se agravarem. Em alguns instantes não reconhecias nem a mim, nem ao nosso filho. Mas, após alguns minutos parecias voltar ao normal. Precisavas de tratamento. Mas, antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, desaparecestes pela primeira vez. Preocupei-me, acionei a polícia, mas, em três dias voltastes para casa. Não entendias meu desespero, era como se aqueles três dias sequer existissem.
     Busquei ajuda. Fomos a diversos especialistas, mas nenhum conseguia identificar o problema, diziam que sua saúde estava perfeita. Na ânsia de estar enganada, convenci a mim mesma que eles estavam certos. Alguns dias se passaram sem qualquer sintoma se manifestar. Enfim parecia que tínhamos nossa vida de volta. Senti-me tão confiante que achei que poderias retomar a rotina de trabalho. Fostes ao trabalho como costumavas fazer, mas não voltastes. Isso aconteceu há dois meses.
     Procurei por você todos os dias. Angustiava-me saber que eu era a culpada por te perder. Vi minha esperança se esvair por meus dedos a cada dia. Até que, ontem, desisti por completo. Senti-me derrotada. Fui àquele bar para tentar fugir de mim. Sequer acreditei quando te vi sentado. Pensei em correr e te abraçar, mas temia sua reação. Foi então que sentei ao teu lado e te encarei desejosa de que recordasses tudo quando olhasse em meus olhos. Mas, tua reação me disse o contrário. Pensei em fugir dali, mas me surpreendestes com teu cumprimento. Percebi então que para te trazer de volta, teria que conquistar-te novamente, como na noite em que nos conhecemos. Foi o que fiz. Sei que isso tudo deve parecer loucura. Mas, é essa a verdade. Agora que estás aqui, por favor, não vá, fique. Se preciso for, viveremos tudo de novo.”
     Atendi àquele pedido e fiquei. Infelizmente as lembranças das fotografias jamais voltaram a mim. Mas, pude construir novas recordações com minha família. Diria que minha vida (re) começou naquela noite em que aquela mulher sentou-se ao meu lado naquele bar e me deu tudo o que eu havia perdido.

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