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quarta-feira, 27 de setembro de 2017

“Mãe!”: Uma interpretação para o filme de Darren Aronofsky.


Assisti ao filme sem ter lido qualquer crítica, entrevista ou comentário a respeito. Daí porque, em um esforço para entender a obra, cheguei a uma conclusão diversa da dita interpretação bíblica, a partir das cenas, elementos e diálogos do filme, a qual compartilho com vocês.

Primeiramente, só há dois personagens: o poeta e a esposa. A casa é uma metáfora para o relacionamento deles dois, que é construída do zero e mantida pela esposa. Ao dizer "você é a casa", poeta quer dizer que a esposa e a casa (relacionamento) se confundem, na medida em que ela abdica da própria vida em prol da casa. As pessoas que entram na casa no decorrer do filme são ideias, que surgem na mente do poeta, e que ele acaba trazendo para o relacionamento. O poeta tem problemas de criatividade, ora não tem ideia alguma, ora é tomado por tantas, que sua convivência com a esposa é diretamente afetada. O poeta é um homem egocêntrico, que ignora as frustrações da esposa, que não possui qualquer talento em especial, e vive frustrada por isso.

A pedra brilhante do começo do filme, é o amor que ficou da primeira mulher, uma lembrança que ele guarda com cuidado, com carinho, de algo bonito, que foi dado ao personagem de Javier Bardem, o poeta, e permitiu que ele pudesse recomeçar.

A casa representa a segurança, a estabilidade do novo relacionamento que a personagem de Jennifer Lawrence, a esposa fornece ao poeta. O coração que pulsa dentro da casa é o amor que a esposa sente pelo poeta.

Esposa e poeta vivem bem na casa, sem interferência alguma. Até então, ele não consegue escreve, enfrenta uma espécie de bloqueio criativo.

A esposa possui uma vontade de criar algo, mas falta-lhe o talento. A cena em que tenta compor cores para preencher uma parede em branco denota isso. Há na esposa uma ânsia por trazer ao relacionamento algo novo, além da casa.

O personagem de Ed Harris representa uma primeira ideia, que chega até o poeta e o toma por completo, fazendo com que passe a noite em claro, fascinado. É uma ideia que fascina, mas antiquada, viciada, adoecida. Mas, que de pronto incomoda a esposa.

A cena em que a esposa encontra algo vivo, que sangra no sanitário do banheiro, representa o primeiro impacto dessa ideia no relacionamento, como se fosse um câncer que começava a crescer.

Os problemas se refletem diretamente na estrutura da casa, que é a metáfora para a estrutura do relacionamento.

A personagem de Michelle Pfeiffer representa uma segunda ideia, que chega até o poeta para complementar a primeira ideia (Harris), mas com características mais marcantes. Esta absorve o poeta parcialmente, porém afeta diretamente o relacionamento dele, na medida em expõe as fragilidades da esposa, deixando-a insegura, indagando-a sobre o porquê de falta de criatividade.

A sala onde a pedra do amor passado é guardada representa o coração do poeta. Quando as duas ideias chegam até esta sala, destroem a pedra, afetando o poeta diretamente, que sofre pela perda e lacra a sala, como se quisesse isolar proteger seu coração de suas ideias e de si mesmo.

A partir do momento em que a sala é lacrada, o poeta perde o contato com aquilo que o remetia ao passado, e fica entregue inteiramente ao domínio das ideias. Não será mais influenciado por seu coração, já que este foi isolado.

A duas ideias, representadas pelo casal Harris e Pfeiffer, causam sérios desconfortos na esposa. Para lidar com suas crises, ela dilui um pó em água, fazendo uma solução amarela, a qual representa remédios antidepressivos, que ela toma para poder lidar o desconforto que as novas ideias do poeta lhe causam, pois que evidenciam sua falta de capacidade criativa.

No terceiro dia, chegam até a casa os dois filhos do casal visitante. São duas ideias derivadas das anteriores, mas que conflitam entre si violentamente, de um modo que atinge até mesmo a esposa. As ideias lutam entre si, até que uma elimine a outra.
A ideia que sobrevive acaba por ser descartada pelo poeta, mas não sem antes alertar a esposa pelo que está por vir.

A cena do velório representa a mente do poeta sendo invadida por novas ideias, que são trazidas pelas duas primeiras (Harris e Pfeiffer). A esposa, acostumada à calmaria da improdutividade de outrora, se vê diretamente afetada pelas inúmeras ideias que começam a disputar espaço com ela na casa (relacionamento). Algumas dessas ideias até tentam ajudá-la a manter a casa, mas a maioria delas se mostra danosa, destrutiva à estrutura que a esposa construiu para abrigar o poeta.

O coração pulsante no interior da casa, que representa o amor da esposa pelo poeta, vai definhando aos poucos.

O poeta não consegue enxergar que as ideias estão destruindo a casa (seu relacionamento), pois está totalmente encantado por elas, depois de tanto tempo sem criar nada.

A esposa, porém, ao ver a casa sendo destruída, se revolta de um modo explosivo, fazendo com que todas as ideias desapareçam.

Neste momento, o poeta discute, briga em favor das ideias. A esposa reclama por eles não fazerem sexo, numa metáfora ao fato de que eles não fazem nada juntos, que ele não compartilha um pouco do seu talento com ela. A esposa reconhece, de certa forma, que não consegue criar algo sozinha.

O casal faz amor e, no dia seguinte, a esposa engravida. Ao engravidar, abandona os antidepressivos. A gravidez é metafórica, representa que ela enfim consegue despertar em si alguma criatividade, ainda que com o auxílio inicial e necessário do poeta. 

Durante meses o poeta trabalha para organizar todas as ideias que o visitaram. Por fim, consegue compor um poema. Nesse ínterim, esposa cuida da recuperação da casa, do relacionamento.

Porém, tão logo o poeta finaliza o poema, novas ideias começam a surgir, querendo a atenção dele para se materializar através de suas palavras.

Estas ideias, a princípio, não entram na casa. Porém, logo o poeta se deslumbra com tamanha profusão de ideias, e a casa (relacionamento) logo é invadida por elas novamente. A esposa é posta de lado uma vez mais. Porém, dessa vez, se vê ameaçada.

O poeta então entra em uma espécie de surto criativo, e começam a surgir ideias cada vez mais fortes. Umas ainda se preocupam em manter a casa, outras são completamente destrutivas, e umas outras são egocêntricas, voltadas para cultuar a imagem do poeta enquanto uma espécie de Deus.

O diálogo em que um dos “fãs” fala que o poeta “escreveu as palavras para ele”, representa não apenas uma ideia egocêntrica, mas o desejo do escritor de ver suas palavras moldando-se ao leitor.

A esposa já não é vista em meio a tantas ideias, mesmo quando estas a ameaçam, agridem. A casa começa a ser severamente destruída, representando o desmoronar do relacionamento.

O poeta perde o controle sobre as ideias, que conflitam entre si, tentando prevalecer.
Porém, em meio ao desespero, o poeta consegue despertar e salvar sua esposa. Fugindo da confusão, ele consegue levá-la até o escritório (seu coração) onde guardava a pedra preciosa, aquele recinto outrora isolado onde as ideias entram.

É nesta sala, que representa o coração do poeta, que a esposa dá à luz. A criança representa uma criação dela com a ajuda do poeta. Linda, pura, e frágil, a criança representa uma obra conjunta, criada não pela razão, mas sim pelo amor.

A esposa cuida da criança, a alimenta. Mas reluta a entrega-la ao poeta.

Os presentes que as ideias que aguardam do lado de fora entregam, representam as coisas que o poeta conseguiu com suas ideias racionais, que aguardam do lado de fora do seu coração, esperando para ver a nova criação.

A esposa, porém, não quer entregar a criança, pois sabe que as ideias do surto criativo dele podem destruí-la.

Por um descuido, a esposa adormece e o poeta se apodera da criança, entregando-a às ideias que aguardavam fora do seu coração.

Como previsto, as ideias logo tratam de destruir a criação, querem se alimentar dela, beber de sua pureza. As ideias do poeta carecem dessa inocência, vez que já impregnadas dos seus vícios e problemas.

Ao ver sua criação despedaçada, o coração que pulsa nas paredes da casa para de bater, representando a morte do amor da esposa pelo poeta. Ela então resolve acabar com tudo.

Quando decide incendiar a casa, está, em verdade, acabando com o relacionamento, ainda que saiba que aquilo a irá destruí-la, aceita sofrer, pois já não há como sustentar aquela situação.

O poeta vence o domínio das ideias por um instante, e tenta impedi-la, pois sabe que necessita da estabilidade de um relacionamento.

Mas, já é tarde. Ao incendiar a casa, a esposa destrói o relacionamento, mas também sai destruída.

A cena final, em que o poeta encontra o que sobrou dela em meio às cinzas, e dela tira o que de mais bonito ainda resta, o amor que ela tem por ele, uma nova pedra preciosa, uma nova lembrança, que ele precisa para seguir em frente, e recomeçar outra casa, outro relacionamento, com uma outra mulher.

Tão logo esta pedra preciosa é posta na sala que representa o coração do poeta, a casa se restaura, e outra mulher desperta na cama, representando o início de um novo relacionamento, e a repetição de um ciclo.

O título do filme representa a necessidade que o poeta possui de ter uma mulher que o forneça estabilidade, segurança, que cuide dele, nos momentos em que sua criatividade está adormecida.

Porém, sempre que sua criatividade desperta, e ele entra em seu surto criativo, ele põe tudo a perder e se entrega às próprias ideias, ainda que isso signifique pôr tudo a perder.

O diálogo em que a esposa diz que o poeta nunca a amou, mas que ele amava o amor dela por ele, denota essa necessidade de se sentir amado, e o egocentrismo de um artista apaixonado apenas por suas próprias criações, que vê o amor como algo belo de se ter, uma pedra preciosa para ser admirada.

Enfim, esta foi a interpretação a qual cheguei, tendo em conta os elementos destacados. Claro, o filme é uma obra fantástica, que deixa em aberto a possibilidade para inúmeras análises. O seu mérito resiste justamente em nos fazer buscar uma explicação para os elementos que surgem na tela. Conquanto a referência cristã pareça bem evidente, há outros aspectos que podem ser analisados, como a própria natureza do relacionamento entre o casal.

Espero que você, caro leitor, tenha gostado desta interpretação. Peço que manifeste a sua opinião a respeito, concordando ou discordando. É possível que algum símbolo não tenha sido analisado. Portanto, aguardo seu comentário.



6 comentários:

  1. Mesmo tendo muito claro as metáforas bíblicas que o diretor representa brilhantemente no decorrer do filme, por vezes até critica o Deus cristão vaidoso e carente de amor... Gostei muito do seu ponto de vista, inusitado, mas muito sagaz e completo, parabéns!!!

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    1. Muito obrigado. O filme é bastante inspirador. É a primeira vez que me aventuro a interpretar uma obra cinematográfica. Fico feliz em ter acertado na análise.

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    1. Obrigado, Lucas.
      Caso conheças mais alguém que gostou do filme, e queira conhecer uma interpretação diferente, peço que indique o blog.

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  3. Fui assistir o filme já tendo lido algumas críticas, então vi mais pelo lado bíblico mesmo. Curti muito essa interpretação. Mas aquela parte que o chão fica manchado de sangue do filho que morreu, ela limpa, troca de tábua e depois ressurge o sangue no mesmo local. Como seria a interpretação dessa parte?

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    1. Primeiramente, obrigado pelo comentário. São tantos elementos, que acabei esquecendo de acrescentar esse. Segue a explicação:

      A casa é a esposa, um reflexo dela. A morte ocorre dentro da casa, então é algo que afeta a esposa diretamente. Ao substituir a tábua, ela acredita que resolveu o problema, mas, ao primeiro sinal de desequilíbrio no relacionamento, a mancha reaparece.
      A mancha de sangue representa um trauma, ocasionado por uma dor passada. Trata-se não de uma mágoa superficial, na medida em que a esposa não consegue limpar a mancha. Para lidar com aquilo, será necessário um esforço maior. A esposa decide então trocar a tábua. Quando o faz, acredita estar restaurando as coisas ao que eram antes. Mas, fica bem claro que não, já que a própria tábua que substitui a manchada, possui uma cor diferente. Apesar disso, a esposa acredita que aquela mancha (mágoa) não irá afeta-la novamente. Porém, logo a mancha reaparece, mostrando para a esposa que as coisas não são tão simples, que o problema nem sempre é facilmente resolvido.
      A mancha é uma dura lembrança do que aconteceu no passado, é um prenúncio de que aquilo tudo pode se repetir. Daí porque, assim que a mancha reaparece, a esposa a cobre com um tapete. É como se quisesse ignorar aquele aviso, acreditando que as coisas podem ser diferentes.

      (P.s.: Vi o filme há cerca de 3 semanas, por isso, é possível que tenha me confundido com relação ao momento em que a esposa cobre a tábua com o tapete. Recordo que ela o faz. Em todo caso, seja para cobrir a tábua de cor diferente, seja para cobrir a tábua com uma nova mancha de sangue, o intuito é o mesmo: ignorar a existência daquele trauma, evitar lembrar a dor passada.)

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Se você gostou do texto acima, fique a vontade para comentar. Críticas, elogios ou sugestões serão sempre aceitos. Se acaso achares que o blog merece, siga-o.
Obrigado. R.H.