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quarta-feira, 8 de março de 2017

Amor Obsoleto

     “Procura-se amor obsoleto”, foi o título que escreveu para o anúncio que pôs no jornal, este já não em papel, material bastante utilizado outrora, mas há muito superado pelas letras iluminadas de telas sensíveis ao toque. Em verdade, jornais impressos eram uma das muitas coisas do passado que lhe faziam falta. Caso ainda existissem, mais fácil seria encontrar o item procurado, dada probabilidade de partilhar interesses em comum com os leitores remanescentes. Mas, tal qual o amor buscado, a combinação entre papel e tinta tornara-se obsoleta, arcaica.

    Ainda assim, seu anúncio estava agora nos classificados. Era um texto estático, simétrico, objetivo, com palavras bem escolhidas. Letras pretas arredondadas num fundo branco. Uma ilha minimalista em meio ao oceano de imagens coloridas e em movimento, clamando por atenção para toda a sorte de ofertas e procuras. Se lido em comparação aos demais, figurava como poesia, honesta e serena, sem a necessidade de atenção, vez que buscava um olhar que transcendesse a curiosidade fugaz.



     Em poucos minutos, uma resposta. Duas. Dez. Horas depois, centenas, milhares. Logo se tornaram incontáveis. Elogios, cumprimentos, críticas. Grande parte dizia tratar-se de uma ideia genial. “Tal manifestação nos força a refletir acerca de uma época passada, em que o amor era norteado por outros valores, que a sociedade foi perdendo ao longo do tempo, sufocando, em meio a tecnologia e o consumo”, escreveu o crítico de um jornal em nota lançada no dia seguinte. E as manifestações ao anúncio se multiplicavam vertiginosamente.Três dias depois, uma equipe de televisão batia-lhe à porta. Queriam uma entrevista exclusiva com o autor do alardeado texto. Escondera-se, porém. Mas eles não desistiram. Os fios do telefone logo tiveram de ser arrancados, pois o toque tornara-se constante. Isolara-se, pensando que logo o esqueceriam. Mas, a televisão já exibia detalhes de sua vida pessoal. Uma foto de sua ficha profissional, a única disponível dada a sua aversão esse tipo de coisa, ilustrava todas as matérias.

     Arrependia-se, agora, de ter feito o anúncio. Jamais quisera tamanha atenção para si. Pelo contrário, desejava se esquivar de toda a publicidade, com suas discretas palavras, a fim de atrair alguém de gostos similares, cujo anseio por um relacionamento nos moldes descritos seria seu ponto de convergência. No entanto, a julgar pelas coisas que já havia lido e visto até então, atraíra apenas o perfil diametralmente oposto. Queriam todos conhecer tal figura peculiar, não por questões de identificação, mas sim por curiosidade.

     Dias se passaram sem que suas cortinas fossem abertas. Equipes de jornalistas acampavam em frente à sua casa. Vizinhos que jamais lhe digiram a palavra, davam entrevistas descrevendo seus hábitos, como se lhe fossem íntimos. Porém, o estopim se deu quando alguém do passado, com quem tivera um relacionamento equivocado, aproveitou-se da situação para projetar a própria imagem. Se deu conta, então, que não havia como resistir. Não iria cessar enquanto não desse o que queriam.
Exatas duas semanas depois, vestiu-se com suas roupas costumeiras e saiu discretamente, como se fosse comprar cigarros na conveniência. Mal abriu a porta e a avalanche de repórteres caiu sobre si. Perguntavam-lhe tudo, de uma só vez. Balbuciou o que pôde, e entrou em um carro que estava parado diante de si com as portas abertas. Adentrou sem saber a quem pertencia o veículo. Queria sair dali apenas. Deparou-se, então, com homens de terno, cheios de propostas. Queriam suas ideias para o que desse: livros, filmes, e tudo o mais.

     Era coisa demais para um reles anúncio. “Qual o problema desse mundo?”, indagava em solilóquio. Sobretudo, quando começou a ver pessoas usando roupas similares às suas nos dias que se seguiram. Lançara moda. Uma vez mais, sem querer. Logo estava na televisão vivenciando a loucura de conversar com alguém sem olhar em seus olhos, tendo de alternar o olhar entre esta ou aquela câmera. Recusava os roteiros, porém. Forçava os apresentadores a fazerem perguntas diferentes. Queria irritá-los, contrariar a audiência. Mas tudo era visto como marca de autenticidade. E admirado.

     Deu-se conta, então, que aquilo tudo não acabaria tão cedo quanto havia planejado. Não importa o que fizesse. Viu-se cercado por pessoas e coisas que jamais desejou. Ironicamente, tornara-se uma pessoa pública. Embora fosse o mesmo, não parecia ser o autor do alardeado anúncio. Pelo menos não aos olhos das pessoas a quem este fora direcionado. Imaginava-os taxando-lhe de oportunista. Isso lhe corroía. Percebera que seguia por trilhos infindos. Jamais fora assim. Era preciso descarrilar. Mas, como?

     Em uma manhã chuvosa, escondeu-se sob um sobretudo, cobriu o rosto com chapéu e óculos, e partiu. Ruas pouco movimentadas conduziram-lhe até a entrada de um café, esperando encontrar a calmaria que estes lugares costumam fornecer a leitores e escritores. No entanto, surpreendeu-se com uma televisão ligada, magnetizando os olhares para si. Pediu um café, para não perder viagem. Mas, antes de partir, se deparou com uma notícia sobre si. Em suma, com base em seus rendimentos, concediam-lhe o título de “produto mais promissor do ano”.

     Era o que precisava. Enfim, encontrara o próprio calcanhar de Aquiles. Produtos costumam ser bem sucedidos quando são inovadores. No seu caso, a inovação residia em seu jeito antiquado. Tratou, pois, de abdicar deste. Começou por adotar a indumentária “dos dias atuais”. Depois, reduziu seu discurso ao ordinário. Por fim, pôs-se a sabotar as próprias ideias. A empreitada foi um sucesso. Em pouco mais de um mês, naufragara sua marca. Tornou-se um fracasso em vendas, personificando o significado de prejuízo.

     Feito isso, só precisou contar com a facilidade com que a sociedade descarta os produtos, para ser esquecido de vez. Retornou ao velho apartamento. Tentou voltar à vida de antes, mas, além do esquecimento, granjeara o desprezo de seus antigos colegas de trabalho. “Reciprocidade, enfim”, pensou satisfeito. Sem poder trabalhar, restou-lhe viver dos dividendos obtidos – que não foram poucos, diga-se de passagem – durante o cataclismo que vivera durante cerca de seis meses. Algo de positivo teria de subsistir, afinal.

     Dar-se-ia por encerrada a sua história. Era o que pensava, pelo menos. Porém, eis que passados quase dois anos desde o famigerado anúncio, deparou-se com um envelope (item de colecionador), passado por baixo de sua porta. Abriu-o cuidadosamente. Dentro, um pequeno bilhete com os seguintes escritos:



Não coube em si. Apertou o papel contra o rosto. Textura e cheiro. Era real. Encontrara, enfim. No verso do bilhete, um horário, um endereço. Como faziam os antigos. Sorriu. Foi até a sala dos fundos e ligou o computador pela segunda vez, desde que o comprara. Em poucos minutos, removeu o anúncio há muito postado. Ignorou o fato de que as respostas já não eram elogiosas, mas de desdém. Por fim, desligou o computador da tomada. Servira ao seu propósito. Tornara-se obsoleto.

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