Foi
possível ver o brilho da luz, refletida na lâmina da faca, aparecer pelo menos
umas dez vezes até que esta fosse completamente tomada pelo rubro sangue.
Precisar o número golpes seria impossível. Contudo, a julgar pela respiração
cansada do homem que a empunhava, presumir-se-ia que foram muitos. Ele se
recompôs sentado sobre o corpo desfigurado, outrora vivo. Cessada a fúria
bestial, o ar trouxe de volta ao cérebro a racionalidade que fora lançada ao
espaço. O olhar surgido foi de arrependimento. A quem duvidasse, as palavras
esclareceram.
-
Meu Deus, o que eu fiz? Matei minha esposa! Como pude? Eu sou um monstro. –
Desesperou-se, fechando os olhos para evitar contemplar o que fizera.
-
Calma, meu rapaz. As coisas não são tão graves. – Disse-lhe uma voz.
-
Não? Como não? Olhe esse sangue, olhe pra ela. Não consigo sequer reconhecê-la
agora.
-
Realmente, ela já foi mais bela. Mas, tenha calma. Não foi você quem a matou.
-
Olhe essa faca em minhas mãos. Olhe o sangue em minha roupa. Quem a matou
então?
-
Eles a mataram!
-
Eles? Quem são eles?
-
Todos eles. Até mesmo ela é culpada. Você não! Você é a vítima dessa história,
acredite.
-
Você está louco! – O brado ecoou no recinto.
-
Louco? Sou a voz da sanidade que quer te mostrar a verdade. Você só precisa
abrir os olhos e enxergar. Você não é culpado de nada. Você segurou a faca, mas
foram eles quem a apunhalaram.
-
Não consigo entender. O que você está tentando fazer?
-
Não quero fazer nada. Apenas estou tentando te mostrar a verdade. Abra sua
mente. Procure pelas respostas.
-
Respostas? Como encontrarei as respostas sem sequer saber quais são as
perguntas?
-
Acalme-se. Porque ela está morta agora? Que razão te fez pegar essa faca e
tirar-lhe a vida?
-
Ela me traiu! Por isso.
-
Você a viu com outra pessoa?
-
Não!
-
Então como sabes que foste traído?
-
O Emanuel me contou. Zombou de mim, aquele infeliz. Disse ainda que todos se
riem de mim pelas minhas costas.
-
Entendo. Mas era verdade o que o Emanuel contou?
-
Não sei.
-
Você não perguntou para ela?
-
Perguntei. Ela não respondeu. Deu um sorriso debochado e perguntou se eu enlouquecera.
-
Percebes? Não és o culpado, eles o são. O Emanuel, que criou em ti a dúvida.
Ela por não esclarecê-la. Se não fossem eles, não terias feito isso. Talvez,
ela desejasse isso. Por isso sorriu, provou tua fúria. Foste apenas manipulado.
-
Mas, eu quis matá-la. Pelo menos, naquele instante eu quis. Mas, agora me
arrependo.
-
Esse arrependimento é o que prova o que eu digo. Se te arrependes, é porque não
querias realmente matá-la. Foste impelido por algo mais forte, momentâneo, que
te levou a isso. Não somos uma má pessoa, foram eles quem nos incitaram a isso.
-
Pensando bem. Talvez estejas certo. Mas, e agora?
-
Agora você precisa se vingar deles. Ela já foi punida pelo mal que causou. Mas
ainda falta o Emanuel, e todos os outros.
-
Mas quem são os outros.
-
Todos quantos puderes te vingar. Eles são maus, nós devemos puni-los pelo mal
que nos causaram.
-
Isso não me parece certo.
-
Certo ou errado. Tudo depende do ponto de vista. Ouça o que digo. Se parece
errado, é apenas porque alguém conseguiu te convencer que o oposto era o certo.
Entende como tudo isso é frágil?
-
Talvez. Mas se isso for verdade, minha vida inteira foi uma grande ilusão.
-
Isso! Enfim entendeste. Estou aqui para te libertar. Tenho te observado calada
há muito. Mas agora é a nossa hora. Vamos fazer o certo. O que nos parece
certo.
-
Sim. Você me ajuda? Você vem comigo?
-
Sempre!
-
Mas... Quem é você?
- Ninguém. Apenas sua consciência.