Meu pai era militar, desses que
acreditam ser o mundo um paletó de medalhas. Minha mãe era uma sonhadora: um
desses espíritos livres que dão o azar de serem enclausurados em um corpo
frágil, obrigados a se submeter à força alheia. Puxei a ela, dizia meu pai em
momentos de raiva. Queria ele que eu fosse um burocrata, desses que guarda
desejos em gavetas e faz da armação dos óculos sua barricada. A ideia de que um
filho pudesse superar as conquistas do Coronel jamais fora cogitada. Mas, nasci
para viver, e esse era meu defeito. Embora mamãe jamais manifestasse qualquer
opinião, eu via no brilho do olhar dela a admiração que sentia por mim, a cada
vez que eu desafiava meu velho pai.
Sabendo não ser capaz de conter
meu ímpeto, após quatorze anos de labuta, o Coronel resolveu delegar sua
função. “Vais para a escola militar, para aprender a ser homem”, ele me disse
naquela manhã de domingo, enquanto eu flertava com as nuvens. Certo estava de
que, se eu seguisse carreira, teria de obedecê-lo, pois seria meu superior. Meu
sorriso irônico o matou, mas não o dissuadiu. Na manhã seguinte eu parti, com
algumas roupas e muita coragem na mala. Mamãe chorava silenciosa à porta. Meu
pai tinha no rosto aquele ar de vitória. Entregou-me pessoalmente ao comandante
e deu recomendações expressas para que pusessem minhas ideias na masmorra.
O tratamento que recebi naquele
quartel para estudantes foi crucial para mim. Embora já sentisse na pele a
repressão paterna, percebi que ali as proporções eram muito maiores. Minha
mania de observação me permitiu compreender a mecânica por trás de tudo o que
ali era ensinado. O objetivo não era impedir-nos de voar, mas sim estabelecer
uma direção a ser seguida por toda a vida. Sabendo disso, me protegi. Fiz-me de
cego, cultivando em mim a tão combatida criticidade. Esta seria minha maior
arma um dia, e eu sequer imaginava.
Seis meses depois, voltei para
casa. O uniforme engomado e os cabelos curtos arrancaram um sorriso do Coronel,
que logo foi sucedido de inúmeras perguntas. Entreguei-lhe uma carta e abracei
minha mãe. Ao ler o escrito, meu pai silenciou. O comandante responsável por
mim o aconselhava a deixar-me viver. A mudança de opinião se devia ao suicídio
cometido pelo filho do mesmo, o qual possuía a mesma idade que eu, e não
resistira à repressão paterna. Meu pai beijou-me a fronte e nunca mais me
direcionou qualquer palavra de censura. Mas eu sabia que eu era a maior
decepção de sua vida. Mas não me importava com isso. Ele cortara as asas de
minha mãe, não faria o mesmo comigo.
Observei atento, a realidade ao
meu redor. Descobri que minha família era composta por representantes dos três
tipos de pessoas que compunham a sociedade da época: os poderosos dominantes,
representados por meu pai; os submissos silenciosos, que tinham minha mãe como
representante; e os subversivos pensadores, com os quais eu me identificava. A
partir de então, minha mente se pôs a trabalhar e milhares de ideias se
enraizaram em mim. Conforme elas amadureciam, eu sentia a necessidade de
encontrar pessoas com crenças similares às minhas. A ânsia sobrepujou a
cautela. Este foi meu erro.
Aos dezoito anos, descobri ser o
destino um cavalo arredio. Quis eu lhe impor rédeas, e por muito pouco não fui ao
chão. Longe de casa estava. Entre amigos, pensava. Após bebidas e “drogas” dei
voz ao coração, narrei minhas insatisfações, crente que eles concordariam
comigo. Enganei-me e, pela segunda vez, fui posto a ferros. Traidores. Maldita
seja minha verborragia, pensei. Porém, logo depois me redimi comigo mesmo. E
segui cultivando meus ideais no silêncio da cela. Felizmente, o curto tempo na
escola militar me ensinara a ser paciente. Mas dessa vez precisei ser um pouco
mais. Cinco foram os anos que passei no cárcere.
Quando enfim liberto, quis gritar
ao mundo. Mas já sabia o deveria fazer: apeguei-me ao papel e à tinta e engendrei
aquilo que seria ideário de uma geração. Minhas palavras atingiram bases
sólidas e eu as vi ruir aos poucos. Mas a segurança do anonimato só agradaria a
meu pai. Escondido atrás da mesa com minha caneta, eu personificava, em parte,
o sonho medíocre do Coronel. Vendo-me sofrer, mamãe afagou-me os cabelos e disse
“vai”. Lancei-me ao campo e dei um rosto ao movimento. Dei a cara e esperei o
tapa.
Ganhamos ainda mais força e, de
repente, éramos milhares, rumo ao triunfo. Os intocáveis temiam-nos.
Desesperados, atingiram a mim, crendo ser eu o coração. Meu corpo se
despedaçou, e eles comemoraram. Contudo, este foi seu erro: tornei-me um
mártir. Minha voz permaneceu viva, e foi questão de tempo até o recomeço. Meu
nome virou símbolo, e jamais esquecido. Com meu sangue, escrevi meu nome nas
linhas da história.
Anos depois reencontrei minha mãe
por entre as nuvens, satisfeita como jamais a vira. Sua liberdade viera enfim. Ela
contou-me das transformações ocorridas, e de como eu me tornara o orgulho de uma
geração. Dei-lhe a mão e corremos rumo ao sol poente. Lembrei-me então do
Coronel. Jamais o encontrei perdido pelo céu. Às vezes me pergunto se foi por
ele não ter asas, ou se ele as possuía, mas o peso das medalhas não o deixava
voar.
Bonito conto Robson. Apenas um errinho de digitação no último parágrafo (*tornara). No mais, parabéns!
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