Abriu
a porta sem bater e foi logo apontando o dedo no rosto do homem de barba
grisalha que estava sentado á mesa - "A culpa é tua, velho senil. Como
pode fazer isso comigo? Achas mesmo já era a minha hora? Fala sério!" -
"Tenha calma, meu querido. Queira se sentar, por favor." - respondeu
o homem com uma cordialidade que desarmaria até o mais obstinado dos homens.
Ainda nervoso, ele sentou, ameaçando agora, não com palavras, com o olhar.
-
Diga-me, em que posso ajudá-lo, meu caro? - Indagou o velho.
-
Ajudar? Eu quero é que você corrija todas as besteiras que fez no decorrer
desses anos. As coisas não seguiram conforme eu havia previsto, meu personagem
passou por uma série de problemas inesperados e, para completar, saiu da história
sem ter sequer um final digno. Eu sei que é você o autor dos roteiros por aqui,
então trate de consertar tudo.
O
senhor sorriu de um modo gostoso, como se estivesse diante de uma criança,
dessas que surgem com perguntas e afirmações, cheias de razão, e cuja ingenuidade
surpreende e encanta ao mesmo tempo.
- Do
que você está rindo? Acaso falei alguma besteira? Estou perdendo a paciência,
responda logo velho! Porque você me tirou da história?! - A irritação era
visível.
- Você
não é o primeiro a entrar aqui desse modo, sabia? Algo me diz que devo ter a
certeza de que não será o último. Enfim, ossos do ofício. - Respondeu o velho
em tom de desabafo, mas com um leve sorriso no rosto.
- Não
tenho nada a ver com seus problemas. Se recebes muitas reclamações, é porque não
tem feito as coisas direito. O meu caso é exemplo disso.
-
Estás mesmo convencido de que eu sou culpado por todas as suas desventuras, não
é?
-
Quem mais seria, senão você? Você é o autor!
- Alguma
vez você chegou a pensar que pode ser o culpado por tudo?
- Não
tenho culpa alguma. Li o que você escreveu no roteiro, fiz tudo certo e, no fim,
as coisas deram errado.
- Esse
roteiro que você tanto fala, o qual eu escrevi. O que ele dizia para você
fazer?
- Não
o decorei, mas ele dizia basicamente: Viva, ame, lute, conquiste.
- Pouco
específico, não acha?
-
Seja como for, fiz tudo isso, a meu modo, mas fiz. E no fim não deu certo.
-
Entendo. Responda-me, em algum momento alguém dirigiu teus atos? Alguém te
disse o que fazer? Você teve que ensaiar as falas, cenas?
-
Não, as cenas eram todas no improviso. Confesso que achava isso estranho, mas
nem por isso parei de atuar. Fiz o melhor que pude quando estava no palco.
-
Pois é. Então reconheces que, a todo o momento, estavas livre para fazes escolhas,
dizer e fazer o que bem entendesse, certo?
- Sim,
isso é verdade. - Respondeu pensativo, encarando o vazio. Decerto começava a
perceber o que acontecera.
- E,
ainda assim, achas que a culpa é minha. Permita-me esclarecer as coisas: minha
função aqui é unicamente a de trazer os personagens ao palco; nada além. Eu
apenas digo o momento em que cada um deve surgir para compor a história. O desenvolvimento
do personagem, assim como o tempo que ele permanecerá sob os holofotes, depende
unicamente dele mesmo. O roteiro é facultativo, pode-se segui-lo ou não. Perceba
que, ao final, foram suas escolhas que escrevem o roteiro. Você foi o
verdadeiro autor o tempo todo.
-
Talvez você tenha razão. De fato, fiz algumas escolhas equivocadas. Mas, não
foram todas. Não merecia deixar o palco daquela maneira. Não teria como eu
voltar, pelo menos para reparar alguns erros?
-
Infelizmente, não. Uma vez fora, não há volta. É assim que as coisas são.
O
rapaz levantou-se cabisbaixo e seguiu desanimado até a porta. O velho o
observou com o costumeiro aperto no coração, e o olhar de quem já presenciara
aquela mesma cena inúmeras vezes. Contudo, antes de sair o rapaz voltou-se ao
velho:
-
Posso fazer só mais uma pergunta?
-
Claro. O que você quiser.
-
Qual o nome desse espetáculo, no qual estive atuando por todo esse tempo?
O
velho suspirou e respondeu: "Vida".
Interessantíssimo! Me levou mesmo a pensar em todas as pessoas que partiram dessa vida e que de repente - embora isso não aconteça - tenha encontrado Deus - O autor - para uma breve explicação pensando que Ele teria sido o culpado por uma existência tão mal aproveitada - quem sabe - ...
ResponderExcluir