- Mas é um
primor essa esposa do Chico. Disso você não pode discordar! – Comentou sem
desprender o olhar da morena que atravessava a rua.
- Realmente, é
uma bela mulher. Mas essa é uma opinião universal, não vale. Não há um homem
nesse bar cujo olhar não esteja com ela nesse momento.
- Poderia
utilizá-la para reforçar a minha tese. Mas, seria deselegante.
- Ah sim, sua
tese. Desenvolva-a melhor. Quem sabe ela começa a fazer algum sentido.
- Não tivesses a
inexperiência da juventude como “vantagem”, diria que tua teima é irritante. No
entanto, sou compreensivo e entendo que não me fiz bastante claro. Posso
continuar então?
- Por favor!
- Pois bem, meu
jovem, sendo direto, dizia eu que a inveja é a força que rege as relações
humanas, para não dizer a vida. Qualquer outra coisa que lhe disserem será
bobagem.
- Como assim,
meu caro? Dê-me uma prova do que dizes. – Indagou o homem com um sorriso
sarcástico.
- Belo relógio
esse que tens no pulso. É novo? – Apontou.
- Sim. Mandei
trazerem da Suíça. É automático. Banhado a ouro. – O rapaz agora o exibia com
olhar satisfeito.
- Deve ter
custado caro.
- Sim. Confesso
que economizei algum tempo para comprá-lo.
- Presumo que te
orgulhas de possuí-lo.
- Diria que sim.
- Mas, o que o
faz tão especial, a ponto de teres te sacrificado para obtê-lo?
- Como assim? É
um relógio suíço banhado a ouro. Acaso achas que não tem valor?
- Não, até o
mais idiota dos homens reconheceria o valor dele. Refiro-me ao que há nele que
te faz ser orgulhoso de sua posse.
- A beleza da
peça, a qualidade do material utilizado...essas coisas.
- Besteira! Você
sabe que não é isso.
- Não entendo.
Onde queres chegar?
- Apenas estou
tentando te mostrar a verdade.
- E qual é a
verdade?
- Esse relógio
lhe é tão valioso não por seu material ou pela beleza. O que o faz especial é o
fato de que, por ser importado, não é um relógio comum, desses que se vê por
aí, no pulso de qualquer um. Ademais, é feito de ouro, o que, de fato o torna
belo, mas, além disso, atrai os olhares alheios, faz com que as pessoas o cobicem,
invejem você por possuí-lo.
- Não é nada
disso.
- Ok. Discordas
então?
- Plenamente.
- Certo. Mudemos
de assunto. Você é médico, não?
- Você sabe que
sim.
- Há quanto
tempo?
- Uns cinco
anos.
- És um homem
jovem, imagino que ingressou na faculdade bem cedo.
- Sim, era o
único adolescente da turma. Meus colegas de classe implicavam muito comigo por
isso.
- Achas que a
implicância se dava por tua pouca idade?
- Sim, porque
mais seria?
- E se eu te
dissesse que era inveja? Que era um modo dos colegas manifestarem a indignação
que sentiam por teres alcançado teu objetivo tão cedo?
- Diria que
estás enganado.
- Digo mais:
pelo modo como você falou, devias te orgulhar em ser o mais jovem da turma. E
tal regozijo era um reflexo do seu ego, que se sentia lisonjeado por saber que
despertava a inveja alheia.
- Hahaha. Isso é
loucura, sabia?
- Será? Pense
bem.
- Ok. Se você me
der um exemplo realmente convincente, posso aceitar que tens certa razão.
- Tudo bem. Olha
lá, a esposa do Chico vem voltando.
A conversa cessou.
O silêncio se fez, e o bar inteiro devotou total atenção à moça. Passados
alguns segundos, retomaram o assunto.
- Eis o exemplo
convincente que querias.
- Qual?
- Acabou de
passar. Não viste?
- A esposa do
Chico?
- Sim. Ela
mesma.
- Tá, me explica
essa.
- Você, eu, e
todo o resto do bar paramos para vê-la passar. Certo?
- Claro, como
não parar?
- Pois bem. A
menos que sejas ingênuo, haverás de concordar que todos os olhares a desejaram.
Mentes fantasiaram coisas que levariam a todos nós para o inferno sem qualquer
julgamento.
- Sim, sim. Sou
culpado também, eu assumo. – Sorriu.
- Pois bem. Ela
é uma bela mulher casada. Nós a desejamos. E, ainda que não queiras reconhecer,
isso nos faz sentir inveja do Chico, por ter a sorte de dormir com ela todas as
noites.
- Até pode ser.
Mas isso não me convence.
- Mas eu ainda
não terminei. Faltou dizer que o Chico sabe disso.
- Que todo mundo
cobiça a mulher dele? Como?
- Meu caro, hás
de convir que o Chico é um homem feio, ao passo que ela é perfeita. A probabilidade
de um homem como ele ter uma esposa daquelas é muito pequena. No entanto, ele
conseguiu, casou-se com uma bela mulher. Ele sabe que todos a desejam. Sabe que
é invejado por tê-la desposado. Mas não se incomoda com isso. Na verdade, diria
que ele se orgulha.
- Mas o Chico a
ama.
- Amor...isso
não existe. Foi apenas um nome que inventaram para designar o que quero dizer.
Talvez ele até goste dela. Mas, acima de tudo, há a certeza de ser invejado.
Aquele sentimento de ter algo valioso, que acaricia o ego. Você o conhece. Resguardada
as devidas proporções, é o mesmo que você sente em relação ao seu relógio
suíço.
- Estás
realmente convencido que isso tudo é verdade, não é?
- Nestes anos de
vida vi muitas coisas. Não foi atoa que cheguei a tal conclusão. A inveja é uma
força onipresente. Ela é democrática, está no pobre e no rico, no culto e no
ignorante. Claro, os abastados e os sábios sempre são mais invejados, mas isto
não significa que não sintam inveja de outros que estão em seu patamar ou acima
dele. É algo que nasce conosco. Que nos faz, na infância, querer o melhor
brinquedo. E, se não o temos, quebramos o do colega que o tenha. Na vida
adolescência, nos faz desejar o beijo da menina mais bela, ser bom nos
esportes. Na vida adulta, nos faz querer uma vida confortável. Meu caro chame
do que quiser: vaidade, conforto, orgulho, amor. Seja o que for a inveja estará
por trás, regendo tudo. É algo que faz parte de nós, queira ou não. Mesmo o
mais humano dos homens a tem, embora a negue.
- Desculpe, mas
acho isso tudo uma grande loucura.
- Prove-me o
contrário.
- Como disseste
no início, não vi muito da vida para poder refutar o que dizes. Nem vi tão
pouco para tomar como verdade absoluta o que ouvi. Dar-te-ei o benefício da
dúvida.
- Tudo bem. Quem
sabe não estás certo? Talvez minha tese seja apenas a senilidade da velhice
chegando. Quando estiveres mais velho, se eu ainda tiver vivo, me diga o que
achas. É possível que chegues à conclusão de que eu estou errado. Se não,
aceite que eu estive certo, ou então que também te tornaste senil.
- Tenho de
reconhecer que és um homem esclarecido. Invejo isso.
- Já é um começo. - Sorriu.