Foi em uma manhã de quarta feira,
ao despertar, que o Jair notou que algo não estava certo. Levantara antes de Dalva,
pela primeira vez em dez anos de casamento. Estranhou, afinal, ela sempre
aguardava ao lado da cama até que ele acordasse. Com um jeito todo próprio, lhe
desejava seu “bom dia”, sempre com frases doces, do tipo: “Bora! Levanta e vai
trabalhar!”. Contudo, agora quem estava ao lado da cama era o Jair, olhando-a
com certo espanto. Percebendo-a quieta demais, aproximou-se. Dalva parecia não
respirar. Ao encostar o ouvido sobre o colo gélido, Jair arrepiou-se com o
silêncio.
O que se seguiu foram horas de
telefonemas e todos aqueles procedimentos que sucedem o óbito. O Jair foi o responsável por tudo. Desde a escolha do caixão,
até à feitura do café, que foi servido no velório. Esta última tarefa em nada
lhe era estranha, já que Dalva o obrigava a fazer café todos os dias. Todos os
que provaram o café elogiaram a habilidade do viúvo. Acerca deste, indagava-se
também sobre como seria o futuro sem a esposa. Um casamento longo como aquele
sendo interrompido por uma fatalidade, certamente a vida não seria mais a
mesma. Jair bem sabia.
O funeral foi na quinta-feira,
pela manhã. Todos estavam admirados com a força mostrada por Jair. O semblante
sério, inabalável, escondia a dor que por dentro o consumia. Pelo menos esse era
o comentário que se disseminava entre os presentes. Alguns ofereciam seu ombro
amigo, caso o viúvo desejasse desabafar. Cordialmente, o Jair agradecia, e
dizia estar bem, apesar de tudo. Arrisco dizer que a comiseração em relação a
ele, era bem maior que o pesar pela defunta. Não fossem as lágrimas derramadas
pelos parentes, poder-se-ia dizer que a morta era mera coadjuvante.
Finda a cerimônia, as pessoas
foram saindo, até que restasse apenas o Jair. Quando se viu só, ele enfim desabafou.
Cuspiu no túmulo e se pôs a amaldiçoar a nova hóspede do cemitério. Alguém que
por ali passasse, teria escutado coisas como:
- “Já vai tarde! Agora sim eu volto
a viver. Maldito foi o dia em que eu botei aquela aliança no teu dedo e disse “sim”
para o padre. Mas agora eu estou livre. Acabou o tormento. Lembra-se daquelas
panelas que me forçavas a arear? Vou usar todas como urinol! E tua coleção de
bibelôs de porcelana? Vou me divertir quebrando de um a um! Mas não agora.
Agora eu vou aproveitar um pouco. Fica aí, que eu vou curtir. E fica tranquila
que todos os anos, no Dia de Finados, eu venho aqui para cuspir na tua
sepultura de novo!”.
E o Jair saiu pelas ruas,
arrotando liberdade. Parou no primeiro bar que avistou e pediu uma dose da
bebida mais forte. Após essa primeira, outras tantas vieram. E até o anoitecer
o Jair já havia feito vários amigos de copo. As “moças” o chamavam de
Jairzinho, e a vida era um carnaval. E entre bebidas, sexo e farra o viúvo
desapareceu durante todo o fim de semana. A dieta alcoólica provocou um estado
de embriaguez constante, de modo que a sobriedade somente retornou na manhã de quarta-feira.
A julgar pela ressaca, Jair
jurava haver despertado em plena quarta-feira de cinzas. Poderia até não o ser
para as demais pessoas, mas, para ele, sim. Embora deitado, sentia a cabeça
girar. Estava em um quarto desconhecido, deitado em uma cama com pelo menos
cinco outras pessoas. Transtornado das ideias, só conseguiu se situar quando
alguém perguntou que dia era aquele, e ele se ouviu responder: “quarta-feira”. Imediatamente,
lembrou-se que completava uma semana da morte de Dalva. Se não estivesse
enganado, a missa de sétimo dia seria naquela manhã.
Em um sobressalto, pôs-se de pé,
incomodando os demais, que ainda dormiam. Percebendo-se apenas com a roupa de
baixo, tratou de procurar suas roupas dentre as tantas jogadas ao chão. Juntou
algumas peças conhecidas, outras nem tanto, e vestiu-se. Saiu à rua apressado,
passando a mão pelos cabelos, pondo a camisa para dentro das calças. Sequer
sabia onde estava. Mas, era preciso chegar à missa a tempo. Apanhou o primeiro
ônibus que passou e seguiu.
Após uma hora rodando pela
cidade, conseguiu chegar à igreja. Quando entrou, o Padre já estava nos ritos
finais. Após a bênção, este pediu que algum querido da homenageada viesse ao
altar para proferir algumas palavras. Imediatamente, todos os olhares se
voltaram para o Jair, que, sentado em um banco ao fundo, lutava contra a dor de
cabeça e a náusea. Percebendo o silêncio, o viúvo entendeu a mensagem. Pôs a
expressão grave no rosto e se encaminhou ao altar, tentando não cambalear.
Já diante do microfone, olhou
para todos os presentes e tentou pensar em algo para dizer. Embora desejasse
amaldiçoar uma vez mais a Dalva e expor para todos a tirana que era fora
naqueles dez anos de casamento, porém sabia que seria julgado. Por isso, procurava palavras
melhores. Mas raciocinar era difícil. A farra fora intensa, a ressaca o era
ainda mais. Não suportando o peso da cabeça, apoiou-a nas mãos e ficou imóvel
por alguns minutos. Arrisco dizer que nesse instante Jair tirou um breve cochilo.
As pessoas presentes, no entanto, interpretaram a situação
de modo diverso. Comentavam a infelicidade do pobre viúvo. Cochichavam entre
si coisas como:
- “Pobre Jair, olha como ele tá
acabado. Eu sabia que ele estava se fazendo de forte. Aposto que após o enterro
ele desabou.”.
- “Ele amava tanto a Dalva, não
vai suportar viver sem ela. Olha o estado dele, e isso porque não faz nem uma
semana que a ela faleceu.”.
E o Jair, que a estas alturas já havia sido
gentilmente retirado do altar pelos coroinhas, pensava apenas em chegar a casa
para se recuperar, cumprir as promessas que fizera a Dalva no cemitério para depois
cair na gandaia novamente.