Foi em um dia de chuva forte, dessas que nos prendem em casa. Cuidava eu de
meus afazeres de menino, ao passo que meu avô velhava em sua cadeira de balanço.
Lembro-me de ter lhe entregue minha atenção no instante em que ele pôs a mão no
pulso e desabotoou seu velho relógio. Em seguida, começou a dar corda nele, deixando
o olhar passear pela rua, que se banhava na água da chuva.
Conquanto aquilo não fosse
nada de extraordinário, e sim um hábito do velho, reconheço que foi a primeira vez que
reparei em seu costume.
O relógio, se bem lembro, era bastante antigo, um dos primeiros modelos
fabricados no país. O dourado desbotado e a pulseira de couro ressequida não só
atestavam sua idade, como também corroboravam a história que meu avô costumava
contar sobre como ganhara aquele relógio. Dizia ele:
“Quando completei 18 anos, tudo o que eu mais queria na vida era uma
lambreta. Pedi uma ao meu pai e ele me indagou sobre o motivo de meu querer. Eu
poderia ter lhe dito que era para poder impressionar as garotas, mas tudo o que
conseguir dizer foi que ‘com a lambreta eu conseguiria chegar rápido onde quisesse, que
não perderia mais tempo’. Meu pai sorriu e não me disse nada. Saiu de casa sozinho,
sem avisar a ninguém e passou o dia fora.
À noite, quando ele voltou, eu estava ansioso, pensando que ele me traria a dita
lambreta. Não consigo descrever a decepcionante surpresa que tive quando ele me
entregou aquela pequena caixinha de madeira. Relutei em abri-la, tentando evitar a
frustração. Mas o olhar de meu pai me obrigou e, quando vi o relógio, simplesmente
emudeci.
Meu pai tirou-o da caixa e o pôs em meu pulso. Em seguida, me deu o maior
presente que eu poderia receber. Olhando em meus olhos, proferiu suas sábias palavras:
Filho, quero que você olhe para este relógio. Perceba que ele é capaz de contar o tempo,
mas não o controla. Ao contrário do que você pensa, não se ganha ou perde tempo. Ele é
mais forte que todos nós. É uma fera que não se pode domar. Pouco importa se você irá
depressa ou devagar a algum lugar, você só chegará se o tempo permitir”.
Naquela época eu não entendia o significado daquela história. Na verdade,
apesar de tê-la ouvido por diversas vezes, a única ocasião em que eu, de fato, lhe dei
atenção, foi naquela tarde chuvosa. Após perceber que eu o observava em silêncio, meu
avô me pôs em seu colo e fez questão de contá-la novamente. Algo me diz que ele sabia
que aquele era o momento exato, quando enfim teria a minha atenção.
O velho contou tudo com calma, olhando em meus olhos, mas sem cessar o
movimento que fazia com as mãos calmamente, dando corda no velho relógio. Quando
ele terminou, fiquei em silêncio por alguns instantes observando seu movimento quase
de mecânico. Por fim, perguntei: “Vovô, por que o senhor dá corda no relógio todas as
tardes?”.
Ele me olhou por alguns instantes, sabia o que dizer, mas queria que eu
entendesse, por isso quis escolher as palavras. Não saberia dizer qual foi o tom utilizado
pelo pai do meu avô, quando lhe deu o relógio, mas imagino que tenha sido bastante
parecido ao que o velho usou naquele instante para me explicar, pois sempre que
recordo, é como se pudesse ouvi-lo falando uma vez mais.
“Hoje, meu filho, só me resta dar corda neste velho relógio. Este é o meu afazer
diário, o que me mantém vivo. Houve um tempo, é verdade, em que esta era apenas uma
dentre tantas coisas que eu tinha para fazer durante o dia, mas hoje é diferente. Posso
esquecer tudo, menos essa obrigação. Desde que o ganhei, não houve um dia sequer que
eu tenha esquecido. Sabe por quê? Porque este relógio conta o meu tempo. É preciso
que estes ponteiros trabalhem, para que eu saiba que o tempo está passando. Não sei
quanto tempo terei, mas graças a ele posso saber quanto já tive. Por isso dou corda,
porque se um dia o relógio parar, o tempo correrá e me deixará para trás”.
Ainda que ele tenha se esforçado para ser claro, eu não entendi muita coisa.
Depois daquele dia, houve outras tardes chuvosas. Mas havia sempre algo mais
interessante a fazer que ficar observando o velho se balançando em sua cadeira e dando
corda em seu relógio. A despeito de meu desdém, ele seguia com sua missão, todas as
tardes.
Até que um dia, quando eu já não tinha as tardes livres, meu celular tocou. “Teu
avô”, disse minha mãe. Corri para casa e encontrei-a aos prantos no sofá, enquanto meu
pai tentava consolá-la. Vovô falecera. O velório foi em casa, caixão aberto. Aproximei-me
e meu olhar não procurou seu rosto, mas sim seu pulso. O velho relógio, que tanto
trabalhara durante aqueles anos, estava parado. Os ponteiros enfim descansavam. O
tempo deixara vovô para trás.