“A vida não segue trilhos”, a frase ecoou em minha mente, e
despertei daquela espécie de transe que só o prazer oferece.
Ofegante, eu tinha sob mim o corpo nu daquela moça que eu sequer
sabia o nome. Nosso suor era um só, assim como nossos corpos
conectados. O pulsar do meu coração, no entanto, era o único que
eu conseguia sentir. Foi quando me dei conta que tinha as mãos
envoltas no pescoço da moça. Pior ainda, eu apertava forte.
Soltei-a em um sobressalto e, já de pé, observei seu corpo imóvel
sobre o sofá. “Está morta. Eu a matei.”, pensei. “A vida não
segue trilhos”, repeti involuntariamente.
“A vida não segue trilhos”, foi o que ela me disse, enquanto eu
me enrolava tentando justificar o porquê de não poder entrar em seu
apartamento àquela hora da noite. “Tenho trabalho amanhã, e
reunião, compromissos agendados...”, dizia eu, quando ela disparou
a frase que me deixaria sem argumentos. Simplesmente calei e a segui
porta a dentro. Ela não acendeu as luzes. Mergulhou na penumbra e
pediu que eu o fizesse. Tateei por alguns instantes pela parede, até
encontrar um interruptor. Pressionei-o e, como num passe de mágica,
a luz a fez surgir nua diante de mim. Deitada sobre o sofá, com as
pernas cruzadas, escondia de meus olhos o mistério que estava
prestes a revelar.
A frase então começou a fazer sentido. Seria o mantra de uma noite
que, pela primeira vez em minha vida, era imprevisível. Há duas
horas estava eu escolhendo um filme qualquer em uma loja de
departamentos, para distrair minha solidão. Agora contemplava,
extasiado, aquela linda vagina de pelos descoloridos e levemente
arroxeados. Algo me dizia que eu nunca mais veria algo tão exótico
em minha vida. Sim, pois minha nova amiga não era exatamente o tipo
de pessoa com a qual eu costumava me relacionar. Era ela dessas moças
descoladas, de piercings e tatuagens. Dessas cuja ousadia te faz
temer e desejar ao mesmo tempo.
- Assiste esse aqui. Vai te fazer bem. - Disse ela enquanto apontava
para a capa de um filme que eu não reparei qual era, pois meu olhar
não foi capaz de se conter diante da tatuagem de traços delicados
que começava em sua mão e serpenteava pelo braço. Encontrei o
final do desenho próximo ao ombro da moça, quando me deparei que
aqueles olhos em mim.
- Gostou? - Indagou. Não consegui responder nada. Voltei o olhar
para o nada, enquanto fingia procurar o filme que ela indicara. A
moça deu de ombros e saiu. Ela deu dois passos e, sabe-se lá por
qual motivo, eu consegui balbucear algo como “Assiste comigo”.
Ela voltou sorrindo, enquanto eu permaneci imóvel, com a cara de
idiota, padrão. Passou por mim, vasculhou por alguns segundos entre
os filmes. Apanhou um e disparou:
- Assisto esse. Mas tem que ser na minha casa.
O máximo que consegui fazer foi assentir com a cabeça, num gesto
mecânico e involuntário. Dez minutos depois eu subia em um ônibus
seguindo para o lado oposto da cidade, junto àquela desconhecida,
para ver um filme que eu sequer sabia qual era.
Durante todo o trajeto, ponderei sobre o que estava fazendo, e como
diabos havia chegado até ali. Ela respeitou o meu silêncio,
contemplando as ruas que passavam pela janela, enquanto fumava um
cigarro.
Ao descer do ônibus, eu havia tomado uma decisão. Acompanharia a
moça até a porta da casa dela, seja lá onde fosse. Depois daria um
jeito de voltar para casa. Já tivera aventura demais por uma noite.
Queria voltar para a segurança de minha rotina. E o teria feito, não
fosse aquela frase para desarmar minha obstinação.
Todos estes eventos, que haviam me conduzido até ali, passaram
diante de meus olhos rapidamente, até que me deparei novamente com o
corpo dela estendido sobre o sofá. Ela parecia não respirar. A cada
segundo, a certeza de que eu a matara aumentava. Caminhei desesperado
de um lado para o outro. Fugir. Polícia. Cadeia. Palavras e ideias
que corriam através de meus pensamentos. O que fazer? O desespero me
invadia, e eu amaldiçoara o momento em que havia replicado à
provocação dela. Tivesse ficado quieto, isso não teria acontecido.
Estaria em casa, comendo comida congelada e vendo televisão, como
todo bom idiota solitário costuma fazer.
Estava prestes a enlouquecer. Avistei a janela. Pensei em tomar um
caminho mais fácil até o piso térreo. Não tive coragem. Fui
tomado pela covardia e resolvi fugir. Corri e apanhei minha calça
jogada sobre o sofá. Era só me vestir depressa e correr. Ninguém
saberia que eu estive ali. Fora uma fatalidade. Eu não queria. Eu
nem sabia o nome dela. Eu tremia e vestir a calça era impossível.
Sentei no chão, enquanto eu tentava desesperadamente me vestir. Até
que ouvi alguém tossir. Minha alma congelou.
Demorei alguns segundos para reunir coragem necessária. Quando
consegui, voltei meu olhar em direção ao sofá, senti minha alma
escapar junto com o suor. Ela estava voltada para mim, me olhando.
Antes que eu pudesse comemorar o milagre, disparou:
- Eu falei para você não apertar muito. Se forçar demais, eu fico
sem ar e desmaio. Não é assim que funciona. Você precisa sentir o
meu corpo.
Atônito, eu não conseguia dizer nada.
- Vem. Tira essa roupa. Vamos tentar novamente. Eu vou te ensinar.
Posso fazer em você. É gostoso.
As coisas então ficaram menos turvas em minha mente. Tudo começara
com uma fita que ela envolvera no pescoço, e apertava enquanto eu a
penetrava. Aos poucos, lembrei que ela confiou a mim o controle sobre
a constrição da fita. Em algum momento, devo ter tirado a fita e
resolvido sentir com minhas próprias mãos. O calor, o prazer.
Sentir o coração pulsar nas extremidades. Não tive culpa, afinal.
“A vida não segue trilhos, né.”, ela repetiu, cínica, enquanto
eu tirava a calça, liberto do desespero. Só voltaria para a minha
casa três dias depois. Na semana seguinte, descarrilei de vez e
vivemos juntos desde então.
Fonte imagem: https://media.deseretdigital.com/file/d22c751221.jpg?crop=top_0~left_0~width_1000~height_661&resize=width_630~height_417&c=8&a=5bcc9dc1