Ainda resta em mim um pouco de vida, embora boa parte dela já tenha
se espalhado pelo chão. Não parece, mas ainda respiro. Uma
respiração lenta e leve, sutil demais para ser notada. Mesmo eu, já
tenho minhas dúvidas se ainda estou vivo, ou se isso não é o
princípio do inferno, para onde eu certamente irei (como se eu
acreditasse nessas coisas). Ou então, é apenas o mero delírio
louco de minha mente vacilante. Seja como for, meus olhos, mesmo
enrubescidos pelo sangue, ainda conseguem ver borrões de imagens.
Até quando? Não sei dizer.
Neste mar revolto, que é agora a minha mente, lembranças da
infância se alternam com o que eu fiz no dia de hoje. Um frenesi de
imagens sem sentido algum. Ana Maria me dá um beijo sob o pé de
ameixa. Eu apanho a mochila, abraço minha mãe e saio de casa
apressado. A professora chama meu nome e me entrega uma prova que eu
certamente não mostrarei para os meus pais. Meu chefe mistura o café
e o leite, fazendo aquele barulho insuportável da colher batendo nas
laterais da xícara. Esqueço as chaves, e volto ao escritório para
apanhá-las. Um homem passa por mim, correndo e gritando.
Eu estou morrendo. Eis minha única crença. O mormaço desagradável
do asfalto quente umedecido me sufoca. Ou talvez seja apenas o sangue
se inundando os meus pulmões. Talvez eu ainda tenha dois ou três
minutos de consciência, antes de que tudo escureça. Moveria meu
corpo, para ficar em uma posição menos desconfortável, mas mal
tenho forças para respirar. E, porque diabos eu iria querer conforto
numa hora dessas? Porque pentear os cabelos antes de encarar o
vendaval? Vaidade? Estupidez?
De repente, a lucidez. Enfim lembro o que aconteceu. Eram dois
homens. Corriam atrás daquele que por mim passou. Dei azar.
Conformaram-se comigo, e deixaram o outro fugir. Queriam meu
dinheiro, minha carteira, minha vida. Esta última não puderam levar
de mim. Não para si. Então, em um ímpeto egoísta, contentaram-se
em simplesmente me privar dela. Soubesse eu que o desfecho seria esse
teria, pelo menos, tentado reagir. Mas, nunca tive desses impulsos
heroicos. Talvez por um sentimento de autopreservação, que de nada
me adiantou, veja você.
Agora me vejo deitado, contando a finitude dos segundos que me
restam. Qual o narrador de minha história, em terceira pessoa, vejo
quando ele se aproxima de meu corpo. Ele sente o cheiro de morte.
Decerto passou a semana esperando por isso. Eis o ápice do seu dia.
Seus olhos brilham. Ele se aproxima de minha carcaça vagarosamente.
Sabe que ainda estou ali, que meu corpo ainda não jaz sem dono. Ele,
então, aguarda. É paciente, como os abutres costumam ser.
À meia noite e doze minutos, dou meu último suspiro. Ele já está
ali há pouco mais de sete minutos, contemplando satisfeito o meu
agonizar. Senti sua presença desde que chegou. Com cautela, ele se
aproxima. Certifica-se de que eu estou morto, e então parte para a
ação. É a hora de saciar sua fome. Traz a mão ao bolso de traz da
própria calça e apanha sua ferramenta. Debruça-se sobre meu corpo
sem pudor. Por segundos, analisa o melhor ângulo. Parte para a ação.
A câmera já está acionada. Em poucos segundos, sou fotografado
como se minha imagem fosse digna de contemplação.
Ainda ao meu lado, ele confere as imagens que capturou. Inclina o
pescoço em alguns momentos. Já não o vejo, mas sou capaz de sentir
seus gestos. Ele corre o dedo frenético sobre a tela do aparelho.
Está feito. Em alguns minutos, serei visto por milhares, milhões.
Ele então parte satisfeito. Sequer olha para trás. Conseguiu o que
queria. Serei o assunto da madrugada. Minha morte será comentada
exaustivamente, até o próximo ataque seu, ou de outro abutre. Sim,
o bando é grande. Multiplicam-se cada vez mais. E, o pior de tudo,
aumenta também a sua plateia. Ávidos consumidores da desgraça
alheia. Riem, choram, emocionam-se, compadecem-se. Uma verdadeira
catarse de bolso. Portátil. Para ser devorada a qualquer momento,
por alguns instantes, e depois descartada.
Eu ainda contemplo o que restou de mim, após o ataque do abutre. Ao
longe lamento. Sei que sou apenas mais um em seu acervo de mortes.
Ele as coleciona. Vangloria-se por tê-las nas memórias. Orgulha-se
em compartilhá-las. Indiferente às reações, aos danos, à
dignidade das vítimas. Ele apenas deseja estar lá no momento certo,
na hora exata. Sedento pela morte alheia. Decerto sonha em ter um
final semelhante. Ter atenção total. Maldito seja!
Fonte da imagem: http://wp.clicrbs.com.br/impressaodigital/files/2014/08/photo.jpg