Um
pássaro cruzava o céu e, sem saber, levava o meu olhar consigo.
Mas, a brisa logo passava por mim, fazendo-me fechar os olhos, para
sentir seu toque. O cheiro de flor de maracujá. A terra úmida de
orvalho sob os meus pés descalços. Não é difícil lembrar essas
coisas. Na verdade, sinto como se ainda estivesse lá, e não aqui,
em meio a todo esse concreto sufocante. É que parte de mim,
inevitavelmente, ainda está presa àquele cenário do passado, que
já não existe.
Contemplar
o mundo era o meu passatempo favorito, aos nove anos. Não que a vida
adulta tenha mudado minha predileção. Apenas já não disponho de
tempo para devotar a tão maravilhosa atividade. Claro, em certos
momentos, é inevitável. Mesmo hoje, em meio aos passos apressados,
cruzando as avenidas da cidade, amiúde entrego minha atenção a
algum traço de beleza que atravesse o meu caminho. E não me refiro
a mulheres, apenas. Contudo, nada que se compare ao que um dia fui.
Tenho
tantas imagens em minha mente, que lamento por não ter o talento
necessário para externá-las em papel e aquarela. No entanto, creio
que, dentre tudo o que vi, e que até o fim de minha vida verei, não
há algo que se compare ao que meus olhos testemunharam naquela tarde
de fim de março. Algo único, que sobrevive em minhas memórias
somente. Tanto que, não raro, em sonhos volto àquele cenário. Os
sons, as cores, o misto de medo e excitação.
Enfim,
acredito já haver atiçado o suficiente sua curiosidade. Maldade
seria, agora, não compartilhar contigo minha experiência. Então,
contar-lhe-ei o que vi e vivi naquela tarde. É possível que o
relato não seja tão fiel quanto deveria. É que, com o passar do
tempo, as cores ficam desbotadas, inevitavelmente. Mas, a essência
persiste. Não espere um final surpreendente, nem nada do tipo.
Apenas escrevo tais linhas para evitar que o que vi morra comigo. Não
me julgue.
Já
haviam se passado duas horas desde o almoço. O trabalho recomeçara.
Minha mãe estendia roupas no varal, enquanto meu pai terminava de
consertar a cerca, quebrada na noite anterior por uma novilha que
fugira. Não preciso dizer que ele não estava muito satisfeito com
tal atividade. Em seu cronograma mental, planejara um reparo no
telhado do curral. Havia duas ou três vacas prenhes, que dariam a
luz em algumas semanas. Além do que, era preciso fazer preparativos
para a estação chuvosa.
Do
alto, o sol cumpria bem o seu papel. Mas, meu pai usaria seu chapéu
independente disso. Pelo simples prazer do costume. Apesar do calor,
minha mãe não se queixava. Gostava de ver como as roupas secavam
depressa. Naquela tarde, eu a ajudava segurando os prendedores. Ela
estendia a roupa e voltava-se a mim para pegar um, sempre me
presenteando com um sorriso doce. Como era linda a minha mãe. Meu
pai era um homem de sorte.
As
horas da tarde haviam avançado e o sol já se preparava para ir
deitar. O cesto de roupas já estava vazio. Já não havia nenhum
prendedor em minhas mãos. Meu pai, contudo, seguia em seu trabalho.
Não raro ele avançava pelo começo da noite. Era desses homens que
detestam deixar algo pela metade. E, a julgar pelo tanto que ainda
havia a ser feito, ele demoraria ainda algumas horas até acabar o
reparo. Certamente estaria amaldiçoando a novilha fujona, por tê-lo
feito começado tarde.
Caminhávamos
em direção à varanda de casa, quando o vento passou por nós
apressado, assoviando. Atravessou o terreiro e passou por meu pai,
quase levando o seu chapéu. Depois, ficou no descampado, girando
desorientado, sem saber para onde ir.
-
Olha lá, meu filho, a dança das folhas. - Disse mamãe apontando o
dedo.
Voltei
o olhar para onde estava o vento, e vi as folhas secas, que antes
descansavam deitadas, volteando sobre a terra, uma atrás da outra,
em impressionante sincronia, como se dançassem quadrilha junina. O
vento ditava o ritmo, e elas obedeciam, bailando satisfeitas.
Algumas, de tão velhas, já se desfaziam em meio à festa. Era a
derradeira glória. O último sopro de vida aos seus corpos
moribundos.
O
enlevo que me tomou não pode ser descrito. Era algo realmente belo,
digno de ser contemplado. Imerso naquele espetáculo, desliguei-me
completamente do mundo. Tanto, que sequer me dei conta do que
acontecia. Parecia tão natural que a coreografia se tornasse mais
complexa, que o ritmo acelerasse gradativamente. Porém, quando minha
mãe avançou sobre mim, jogando-nos ao chão, tentando me proteger,
despertei. Com as mãos, ela tentava tapar meus olhos e ouvidos.
-
Não olhe para lá. Concentre-se na minha voz. Vai ficar tudo bem. –
Disse e, em seguida, começou a cantar baixinho em meu ouvido,
tentando desviar minha atenção.
Apesar
de todos os seus esforços, eu podia ouvir o som do vento rosnando
enfurecido. Sem muito esforço, consegui livrar meus olhos do abraço
protetor. Contemplei o mais belo espetáculo de todos. Uma orquestra
regida pelo vento tocava um misto de sons: madeira estalando, metal
retorcendo, telhas e tijolos se quebrando. Tudo isso tendo como base
o som pesado do vento. As folhas acompanhavam a canção em seu balé
frenético, rodopiando pelo ar, descendo ao chão para fazer um
gracejo e depois voltando ao ar novamente. Mas, já não estavam
sozinhas. Bailavam agora acompanhadas de pedaços de telha, galhos
secos. Até as roupas que mamãe deixara no varal, haviam entrado na
dança. E se divertiam, sem se importar se estavam se sujando
novamente.
Eis
a última imagem que tenho na mente. Depois disso, lembro de ver
minha mãe me acordando e me apertando contra o peito em prantos.
Parecia aliviada. O lugar estava irreconhecível. Todos indagavam
como teríamos sobrevivido. A casa, os animais, tudo havia
desaparecido. Não mais vi meu pai. O corpo dele nunca foi
encontrado. Durante muitos anos, me convenci de que ele havia seguido
a trupe das folhas. Decerto se encantara também pelo espetáculo. Eu
o invejava.
A
vida nos obrigou a vir para a cidade, e abandonar meu paraíso da
infância. Jamais voltei lá. Mas, ainda tenho viva em minha mente a
lembrança dos anos que ali vivi. Se fecho os olhos, sou capaz de ver
a pequena casa, minha mãe estendendo as roupas no varal, meu pai
consertando alguma coisa com seu chapéu na cabeça. Temo, é
verdade, que os anos roubem essas lembranças de mim, um dia. Mas,
tenho certeza que não há nada que me faça esquecer o que vi
naquela tarde de março. Nada será capaz de me fazer esquecer a
dança das folhas.