Domingo a noite. Com o controle
remoto na mão, ele passeia compulsivamente pelos canais incontáveis da tv por
assinatura. Ela se distrai com uma revista semanal qualquer sobre a vida
alheia. Uma janela aberta deixa entrar a brisa fria da noite. Ela então larga a
revista e pede:
- Me abraça, amor. Tá frio.
- Abraça-me. Assim é o correto. -
Responde ele automaticamente, sem tirar os olhos da tv.
- Ah, tanto faz.
- Tanto faz não. Pede do modo
correto, que eu vou.
- Deixa de ser chato e vem logo.
- Chato? Como assim? Eu estou
querendo te ajudar. Você sabe que não vai aprender se não praticar. - Diz
voltando-se a ela, já com a tv desligada.
- É sério que você vai querer
insistir nisso?
- Vou.
- Amor, é domingo. Me deixa.
- Fez de novo. O certo é deixe-me.
- Esquece isso, vai. Não quero
brigar com você.
- Esquecer? Você sabe que “isso”
faz parte da minha vida. Afinal, de que adianta ensinar a gramática da nossa
língua para outros, e deixar você, minha esposa, na ignorância?
- Como é? Ignorante? Você acha
que eu sou ignorante?
- Não, amor...
- Nada de “não amor”. Eu ouvi
muito bem. Você me chamou de ignorante.
- Não no sentido pejorativo, por favor.
Digo ignorante no sentido de desconhecer, não ter a informação.
- Ah, quer dizer que isso agora é
um problema pra você? Agora minha ignorância incomoda, é isso?
- Não, não. Por favor, você não
está entendendo.
- Claro que não. Eu sou
ignorante, esqueceu? Espera que eu vou alí buscar um papel pra você desenhar,
que aí eu vou entender.
- Calma. Vamos esquecer isso, ok?
- Não. Nada de esquecer. Quero
saber: desde quando minha ignorância passou a ser um problema pra você?
- Não existe isso de...
- Bora? Quero saber. No início
não tinha nada disso. Você nunca se incomodou, dizia até que achava
interessante a nossa relação, que era difícil existir um casal como a gente.
- Mas eu ainda acho. Nada mudou.
- Mudou sim. Agora até o modo
como eu falo te incomoda. Seu estúpido.
- Quer saber? Incomoda sim. Para
falar a verdade, é o seu maior defeito.
- Ah...é?
- É sim! Você sabe que eu me
importo com isso e nunca tentou melhorar.
- Então quer dizer que isso é
realmente muito importante para você?
- É claro que sim.
- Então, posso te fazer uma pergunta?
- Faz.
- Porque quando a gente tá
transando e eu falo: “Vai amor! Me come! Me come!”, você nunca se irritou?
- Ante o golpe inesperado, ele
silencia. Tenta obter um resposta qualquer. “Tudo depende do contexto...”,
diria. Mas, lembra de como ela sabe extamente o que dizer na hora do amor. O sexo é algo agramatical, por assim dizer. Enfim, não havia como argumentar.
- Viu só? Não é tão importante
assim. Agora cala a boca e vem me abraçar.
- Perdida a discussão, só resta a
ele acatar a ordem da companheira. Cinco minutos depois, os dois fazem amor,
sem regras ou normas regendo o que é dito, sussurrado ou gemido. O assunto
nunca mais será alvo de discussão entre o casal, exceto em ocasiões
estratégicas, onde funcionará como uma espécie de afrodisíaco.
Fonte imagem: http://revistashape.uol.com.br/images/stories/antigo/CasalCamaMat.jpg