Acorda cedo todos
os dias, desde sempre. Despede-se do calor da cama e de quem sobre ela estiver,
e segue. Passa pelo banheiro, a higiene o obriga. Mas, apressado demais para
encarar o espelho e perceber as marcas que o tempo imprime em seu rosto. A
roupa escolhida na noite anterior já o aguarda. Veste-a mecanicamente, sem
reparar seus detalhes ou atrativos. Apanha o que precisa pelo meio do caminho,
enquanto, sobre a mesa, o café fumegante o aguarda. Aspira-o no caminho até o
carro. Sai de casa sem olhar para trás. Já não recorda a cor da fachada. Eis
sua rotina.
O caminho
costumeiro não o surpreende. Por isso não desperdiça o olhar com a paisagem. A
velocidade é sua melhor amiga nessas horas, mas é preciso se render às
convenções, evitar as sanções. Comemora a cada sinal verde. Agoniza nos
segundos em que é preciso esperar. Engarrafamentos tirar-lhe-iam a vida. Por
isso acorda cedo, desde sempre. O rádio ligado lembrá-lo-ia que deve escutar
música de vez em quando, mas está com o volume reduzido demais para ser ouvido.
Ele o mantém ligado apenas para se convencer de que não passa de uma
inutilidade.
Enquanto aguarda o
sinal, deixa o olhar se distrair com os rostos que atravessam a rua. Dentre
eles, encontra uma conhecida. Alguém do passado, mas não recorda qual parte
dele. Talvez tenham sido colegas de colégio ou faculdade. Poderá ter sido,
ainda, seu primeiro amor – esquecido. O sinal abre e ele tem que seguir em
frente, não possui tempo para a nostalgia. O relógio em seu braço, seu carrasco,
o adverte que o tempo não parou enquanto ele divagava. É preciso ter mais
pressa. Segue rasgando ruas e arrancando insultos da boca de motoristas e
pedestres. Por fim, chega ao destino.
Adentra o
escritório e caminha em silêncio até sua conhecida mesa. À sua mente, vem a
lembrança de alguém dizendo que, em outros tempos, as pessoas costumavam dar
“bom dia” e sorrir ao chegar. Tempos remotos esses então. Desde sempre este
silêncio funesto habitou aquele ambiente. Muito trabalho o aguarda, e a ele se
entrega de corpo apenas, pois não é desses que crê na existência de alma.
Produto de seu tempo, como todos os demais que o cercam, ele escolhe suas
crenças, que quase inexistem. A única que recorda é o trabalho, que enobrece,
dignifica e ocupa. Por isso é tão ocupado, é sua forma de ser digno e nobre.
O dia avança e
ainda há muito a ser feito. Almoça, como sempre, em sua mesa, oscilando entre
garfadas e parágrafos escritos. “É salutar ter intervalos”, dizem-lhe. “Não
desejo ser saudável, apenas eficiente”, responde para si mesmo. Eis outra de
suas crenças, talvez a maior: se haverá de perecer de qualquer modo, porque
adiar o inevitável?
O telefone toca e
ele logo atende. A voz desconhecida o faz desconfiar que o assunto não diz
respeito ao trabalho. Algo lhe diz que é alguém conhecido, as numerosas
chamadas não atendidas ao celular não surgiram ao acaso, afinal. Pensa em
dispensar seu interlocutor, no entanto, antes que possa, ele lhe diz que é
assunto importante. Permanece na linha, duvidando que o seja, de fato. “Sinto
informar, mas sua mãe faleceu ontem pela manhã. O funeral será hoje à tarde.”,
informa a voz com pesar. Atônito ele fica, mas consegue responder alguma coisa
antes de desligar.
Mal põe o gancho no
lugar e o telefone toca novamente. Em gesto mecânico, atende, mesmo sem desejar
falar com ninguém. Do outro lado da linha, seu chefe indaga sobre um trabalho
que deveria estar feito. Lembra-se que ainda não o concluiu. Pede desculpas e
desliga o telefone. Entrega-se à tarefa devida. Sem ter tempo para sentir a
dor, ignora o golpe recebido e volta à luta, mesmo sangrando. Ninguém sabe o
que aconteceu. Não desejam saber. Estão ocupados demais com as próprias vidas.
Expor seu sofrer denotaria fraqueza. Não o faz. Tenta sufocar a dor, enquanto,
por dentro, ela o mata.
Embora não perceba,
fora condicionado a esta realidade, não é culpado pelo que se tornou. A
pós-modernidade tem seus ônus. “Trabalhar é preciso, viver não”, diria o poeta,
se vivesse nestes tempos. O homem, cujo coração agoniza silencioso enquanto a
mente trabalha incessante, já não reconhece sua essência, é mera engrenagem
nesse complexo mecanismo que se tornou a vida. Faz parte de algo maior que suas
aspirações, problemas. Dele depende o funcionamento de tudo, é o que o
ensinaram desde cedo. Eis o pensamento que o faz esconder de si, nos confins de
sua mente, a dor que ainda o fustiga.
É chegada a noite e
ele deixa o escritório. Sua hora de trabalho deu-se por encerrada horas atrás.
“Era preciso adiantar algumas coisas, resolver pendências”, eis sua
justificativa para o mundo e para quem perguntar o porquê de não ter
comparecido ao funeral. Segue o caminho de volta para casa. A música que vem da
rua o faz perceber que é sexta-feira. Planejaria o que adiantar neste fim de
semana vindouro. Contudo, um carro avança o sinal. A alta velocidade eleva as
proporções do impacto. O vidro estoura e o metal se retorce diante de seus
olhos. Tenta pensar, mas já não pode. A vida o abandona, pois cansada está de
sua extenuante rotina. Solitário, ele morre por não ter tido tempo de viver.
Fonte imagem: http://thumbs.dreamstime.com/x/rob-que-empurra-engrenagem-23119267.jpg