Sentado à beira do
abismo, cansei de esperar a terra ceder. Resolvi adiantar o fim, ele era
inevitável afinal. A vida chegara ao seu limiar, mesmo meu sorriso era de
desprazer. Empunhei então um antigo álbum de fotografias, e decidi morrer de
nostalgia. Tão certo estava do poder lesivo de minha arma, que acreditava ser
apenas questão de tempo até ver findo meu infeliz tédio. Caminhei pela varanda
da casa à procura de um lugar à sombra, onde pudesse sentir a brisa, mas que
permitisse ao sol lançar sobre mim alguns raios de luz. Derradeira vaidade.
Sentei-me, por fim, sob uma mangueira que ficava no quintal. Respirei fundo e
abri o álbum.
A memória, que já
enfrentava a ação do tempo, me fez demorar algum tempo até reconhecer as
pessoas na primeira fotografia. Nela havia duas crianças de mãos dadas: Julia e
eu. Talvez tivesse eu 12 anos no momento registrado na imagem, Julia devia ser mais
nova poucos meses. Recordei algumas poucas coisas daquele tempo: o sorriso de
minha mãe, os conselhos de meu pai, as tardes de futebol na pracinha. Por fim,
me veio a mente a lembrança do primeiro beijo, dado em Julia, meu primeiro amor
talvez. Meras memórias incertas, nada que, de fato, me emocionasse.
Supondo que aquela
primeira parte continha apenas imagens da infância, fechei o álbum novamente e
abri em uma página aleatória, localizada mais ao meio. A fotografia da vez era
dos tempos de faculdade. Muitas pessoas compunham a imagem, foi tirada durante
uma passeata a qual não recordo o dia ou o motivo. Ao centro da imagem, Soraia
segurava em minha mão. Era uma jovem branca que esbanjava jovialidade. Eu
também era belo naqueles tempos. Talvez tivesse amado Soraia mais que a mim
mesmo, mas por algum motivo ela não permanecera em minha vida. Tal conclusão
pôs fim a qualquer faísca que pudesse tentar aquecer meu envelhecido coração.
Avançando mais um pouco
as páginas, deparei-me com uma foto de meu casamento. Helen e eu fazíamos
aquela tradicional pose em que o casal brinda com os braços entrelaçados. De
repente, veio a mim a doce lembrança daquele dia. A felicidade com que subimos
ao altar, o nervosismo que senti ao responder o “sim” ao padre. Lembrei ainda
do quanto resisti para tirar aquela fotografia. Sempre achei a pose ridícula,
mas agora percebia que a imagem ficara bela afinal. Helen parecia um anjo
naquele dia, e eu jurava ser eterno. Infelizmente não aguentamos o peso da vida
a dois. Decidi seguir à próxima imagem antes que as dolorosas memórias da
separação despertassem.
As fotografias que se
seguiram mostravam uma fase de minha vida em que nada era certeza e as paixões
eram voláteis. Foram anos vividos intensamente, que talvez tenham sidos bons,
mas que agora me pareciam perdidos. Em comum, as fotos tinham apenas a minha
presença, os rostos ao lado do meu nas imagens mudavam conforme a paisagem.
Eram aventuras, laços momentâneos, de desejo e liberdade. Talvez, algum daqueles
sorrisos tivesse-me feito ter vontade de ficar um pouco mais. Mas o fato é que
eu, por algum motivo, sempre partia. Em suma, eram páginas vãs de minha vida,
tratei de seguir em frente.
Prossegui à penúltima
página, esperando que uma fotografia mais recente fosse capaz de provocar em
mim o efeito que buscava desde o início, e que as imagens anteriores não
conseguiram. Meu olhar se encheu de doçura, quando vi a imagem de Ana sentada
ao meu lado sob a mesma árvore onde eu estava agora. Uma única lágrima
percorreu meu rosto, mas secou solitária, sem que outra a seguisse o caminho
que ela traçara. A emoção fora minguada pela lembrança da perda. Sofrera tanto
quando aquele câncer a roubou de mim, que agora já não doía mais. Desfiz-me da
dor, que levou consigo as boas lembranças.
Faltava-me apenas uma
página agora. Mas já não havia, em mim, ânimo para prosseguir em minha
empreitada. Meu plano fracassara: todas aquelas pessoas passaram pela vida e
foram importantes, mas agora, nada representavam, não passavam de imagens no
papel, meras fotografias. A tão desejada nostalgia não viera para sufocar-me.
Em seu lugar, eu sentia o vazio, que parecia corroer-me por dentro, como se o
sangue fosse ácido a desfazer o coração a cada respiração. Criei coragem e
virei a página. O susto trouxe consigo a conclusão derradeira, a resolução de
minha vida. Desfaleci solitário, pois mesmo o sol se escondera atrás das
nuvens. Sobre meu colo, caiu o álbum aberto na última página, em branco. Não havia
imagem alguma nele, pois, desde a morte de Ana, minha vida se perdera. Morri
tardiamente, após descobrir que há muito já não vivia.
Fonte imagem: http://digasim.files.wordpress.com/2009/11/albumnina-5.jpg